sábado, 22 de julho de 2023

“OS MORTOS EM ESPANHA ESTÃO MAIS VIVOS DO QUE EM QUALQUER OUTRA PARTE DO MUNDO”

 


(A frase que intitula o post de hoje é atribuída a Frederico García Lorca e, independentemente de equivaler ou não à tradução correta do original, permitiu-me organizar a última reflexão sobre as relevantes eleições gerais espanholas de amanhã. Nas cabeças dos quatro protagonistas principais destas eleições estão pensamentos diferentes e contraditórios entre si. Sánchez pensa numa remontada de última hora, ao estilo das que a seleção espanhola, La Roja, costuma realizar. Feijoo pensa obviamente em ganhar mas não de qualquer maneira, vencer em dois tabuleiros, suplantar o PSOE e evitar a companhia do VOX; Yolanda Diáz pensa claramente em afirmar o seu projeto de agregação à esquerda do PSOE e continuar na governação mesmo que instável com o PSOE. Finalmente, Abascal pensa conseguir um resultado que lhe permita continuar o processo de retrocesso civilizacional e de branqueamento do franquismo que tem ensaiado em alguns ayuntamientos e em algumas Comunidades Autónomas onde forçou com êxito a sua participação na governação. Como é que joga neste contexto a frase de Lorca? É que subjacente a esta eleição há dois tipos de mortos com implicações contrárias em termos de resultados eleitorais. E, como o sugere Lorca, como os mortos estão vivos em Espanha do que em qualquer outra parte do mundo, é matéria relevante para as eleições de amanhã.)

Com início na legislatura de Zapatero, o PSOE abriu um longo e complexo processo de autorização legislativa e de procedimentos científicos (análises de ADN) e operacionais (de arqueologia sofisticada) para proporcionar às famílias que tiveram familiares próximos ou afastados assassinados e depositados em valas comuns, perdidas no território espanhol, designadamente perto de Granada, pelas tropas franquistas na Guerra Civil a possibilidade de exumação de cadáveres e a realização de um funeral digno que honre e respeite a memória desses familiares. O processo tem sido longo e complexo e, durante o mandato de Rajoy, o PP fez tudo ao seu alcance, e conseguiu-o, para interromper, adiar ou simplesmente boicotar essa operação de arqueologia de precisão. Na atual governação do PSOE, o processo foi retomado e tudo indica que se o PP ganhar as eleições as famílias dos que jazem em valas comuns incertas permanecerão de novo afastadas da possibilidade de honrar a memória dos seus membros, proporcionando-lhes um funeral digno. Ou seja, à esquerda, os mortos continuam vivos e certamente esse estatuto pesará na sua decisão eleitoral.

Do outro lado da barricada, os mortos assassinados barbaramente pela ETA nas suas atividades terroristas (o último romance de Fernando Aramburu, autor do enorme Pátria, centrado em dois jovens etarras que não estavam bem informados sobre a lenta extinção do movimento é um prodígio de ironia e cinismo históricos que vale a pena revisitar) fazem parte de um longo processo de polarização na sociedade espanhola. Embora existam algumas famílias de gente assassinada pela ETA que conseguiu protagonizar algumas aproximações aos condenados arrependidos, a marca que ficou na sociedade espanhola é demasiado forte para ser rapidamente diluída. Quando o PSOE se aproximou do BILDU, afinal a força política mais próxima do legado da ETA e perante a estupefação geral aquela força política basca teve o topete de propor entre alguns dos seus candidatos gente que havia sido condenada por terrorismo, o PP e a ultradireita do VOX encontraram aí um mortífero elemento de demonstração da não fiabilidade do PSOE e do equilibrismo político de Pedro Sánchez. Ou seja, agora com implicações eleitorais contrárias, os mortos estão cada vez mais vivos e pairarão sobre a ida às urnas de amanhã.

A ironia da história é que o autor da frase que dá o título a este post é um daqueles mortos que o franquismo atirou para uma vala comum, de sítio não conhecido com rigor e que, por isso, se a direita ganhar com necessidade de pedir a mão ao VOX, permanecerá entre aqueles a que o franquismo não concedeu o direito a uma morte digna.

 

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