(Não é minha intenção replicar o contundente e, em meu entender, definitivo artigo, que José Pacheco Pereira escreve hoje no Público sobre o caminho perigoso que o Presidente da República está a seguir, imiscuindo-se na autonomia de decisão do Governo e vetando o diploma sobre os professores com uma lógica política duvidosa. Perante a súbita consideração que as forças políticas da direita assumiram relativamente à luta dos professores, a posição de Marcelo revela sinais do que considero uma descompensação, que nada augura de bom para os últimos anos do seu mandato. Aliás, talvez pela primeira vez, a voz avisada de Pacheco Pereira, porque profundamente conhecedora da personalidade do Presidente, não esteve sozinha no seu juízo crítico. Isso só pode explicar-se pela evidência de que o caminho é perigoso e excede a meu ver os poderes presidenciais no semi-presidencialismo português. Não sendo minha intenção replicar, já que o original não tem réplica possível, invoco o tema apenas para criticar de cima a baixo o argumento de que o governo da República deveria alinhar a sua posição em relação ao tempo de serviço dos professores com as Regiões Autónomas. É por argumentos desta natureza que o meu entusiasmo pela regionalização em Portugal, não pelas autonomias regionais dos Açores e da Madeira, tem progressivamente arrefecido. Este argumento que Marcelo invoca fornece-me evidência que predomina em Portugal um conceito de autonomia regional que é totalmente incompatível com a ideia de autonomia. Explicar-me-ei.)
O meu argumento é simples. Os governos das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, em estreita relação com os seus Parlamentos regionais, estiveram total e plenamente no exercício da sua autonomia ao decidirem que o tempo de serviço dos professores, congelado por circunstâncias diversas, entre as quais o ajustamento orçamental da crise das dívidas soberanas, deveria ser recuperado a 100%. É a esses governos regionais, e só a eles, que cabe avaliar a sustentabilidade orçamental de tal medida, no quadro do seu modelo de financiamento. A medida foi tomada nas condições e no tempo político que a autonomia regional lhes concede, assumindo total responsabilidade política pela decisão tomada. Estranharia, por isso, que por qualquer motivo que me escape, os governos regionais viessem pedir ajuda ao Governo da República para honrar os seus compromissos perante os professores que trabalham nas regiões autónomas.
Outra coisa bem diferente é o argumento peregrino de que o Governo da República tem obrigatoriamente que seguir a decisão dos Governos Regionais, cobrindo a parada regional. Este é, em meu entender, uma interpretação viciada da autonomia regional. Mesmo que Portugal estivesse regionalizado, se as regiões pressupostamente em vigor tivessem competências para o fazer, as regiões portuguesas não estariam obrigadas a seguir escrupulosamente o que as regiões autónomas dos Açores e da Madeira decidissem politicamente fazer. No quadro das autonomias regionais, são as regiões que definem os seus compromissos orçamentais futuros. Assim sendo, em meu entender, o governo da República não está obrigado a seguir mimeticamente o que as autonomias regionais decidiram consagrar. O princípio da equidade com autonomias regionais não obriga a que todas as regiões tivessem que homogeneizar as suas políticas de remuneração relativamente aos professores. E, aliás, o governo de António Costa teve maioria absoluta em escrutínio livre e democrático não prometendo aos portugueses e aos professores em particular que o seu tempo de serviço iria ser totalmente recuperado a curto prazo.
Marcelo como constitucionalista deveria saber melhor do que ninguém desta matéria. Mas Marcelo é, simultaneamente, um adversário histórico da regionalização e pena é que nunca tivéssemos tido um Ricardo Araújo Pereira para o ridicularizar como aconteceu com o célebre diálogo sobre o aborto. Por isso, Marcelo não hesita em utilizar a arma viciada da autonomia regional para atrapalhar Costa e animar as hostes da educação e da saúde para profundas revisões salariais. Sobretudo, porque Marcelo lançaria os foguetes e Costa seria obrigado a apanhar as canas da reação normal de outros grupos profissionais perante a discriminação positiva dos médicos e professores.
Atenção que este meu juízo não significa ignorar a prioridade de revisão da situação remuneratória de médicos e professores e evitar quer a destruição lenta do SNS afastando os melhores, quer a entrega da educação dos nossos filhos e netos aos menos capazes e com menor vocação. Mas essa discriminação positiva tem de ser submetida ao eleitorado português, não pode ser uma inclinação de circunstância do Presidente a determiná-la. Estarei na primeira linha a apoiar os que tiverem vontade política para propor ao eleitorado essa decisão e assim ganhar consistência governativa futura. Sem isso, o taticismo de Marcelo não me merece qualquer consideração. O suporte democrático da posição de António Costa é mais sólido. Nunca o Presidente Marcelo ganhou a presidência com essa ideia. Por isso, de folclore político estou eu cheio e, por favor, Senhor Presidente não adultere o conceito de autonomia regional para fundamentar o seu taticismo. Não é honesto da sua parte.
Pacheco Pereira tem carradas de razão quando escreve que o caminho seguido por Marcelo é perigoso. Mais do que perigoso é danoso.
Sem comentários:
Enviar um comentário