(Para quem anda minimamente atento aos pronunciamentos e decisões dos principais protagonistas na geopolítica mundial tem sido relativamente fácil dar conta da mudança de posições assumidas por Recep Tayyip Erdoğan, Presidente da Turquia. Essa mudança ocorreu especialmente depois das apertadas eleições a que foi sujeito, ganhas em termos muito disputados numa segunda volta. Sou dos que se mantinham interrogados quanto às reais consequências de uma possível derrota de Erdoğan nessas eleições, sobretudo pelo saco de gatos que o outro bloco eleitoral representava e nada convicto quanto à possibilidade de o transformar num bloco político de governação relativamente estável para a Turquia. Nestas coisas, nunca sabendo o que realmente se passa em matéria de negociações por detrás das imagens televisivas, a verdade é que as duas últimas semanas permitiram registar alterações significativas na posição da Turquia relativamente ao conflito na Ucrânia, com uma surpreendente visita de Zelensky a Ancara que permitiu ao Presidente Ucraniano regressar com alguns oficiais que eram prisioneiros de guerra. Além disso, o esfriamento de relações com a Rússia é notório e a decisão turca de aceitar a integração da Suécia na NATO constitui um volte-face não menos surpreendente, que coloca o início da reunião de Vilnius com a presença de Biden num ponto tão alto que tenho sinceras dúvidas que a cimeira esteja ao nível desse ponto de partida, como aliás António Costa habilmente o salientou.)
Um outro elemento a registar é o facto da mudança de posicionamento do Presidente turco ter-se intensificado após a ainda misteriosa sublevação das tropas mercenárias do grupo Wagner, aliás cada vez mais misteriosa à medida que se vão conhecendo pormenores adicionais sobre as condições em que a sublevação se desenvolveu e sobre a reação (inação?) protagonizada por Putin, ela também cada vez enigmática e incompreensível. O que pode sugerir que Erdoğan tenha outras informações sobre a fragilização de Putin que lhe recomendaram outro posicionamento relativamente à liderança russa.
Mas após tanta resistência e entrave colocados à entrada da Suécia na NATO e depois dos jornais internacionais terem sugerido que o Presidente turco fazia depender a sua aceitação de compromissos da União Europeia relativamente à adesão turca, a decisão de ontem sem que nada relevante tivesse divulgado relativamente a essa putativa condição (talvez invenção de algum jornalista mais atrevido) é ainda mais surpreendente. É óbvio que a decisão ainda terá de ser levada ao Parlamento turco, mas a grande mudança está consumada.
O que é conhecido é que o governo sueco se comprometeu com medidas adicionais visando o contraterrorismo, em princípio permitindo a Erdoğan alguma matéria para invocar internamente a sua posição em relação aos curdos. Da parte da União Europeia, ouviu-se falar de algumas concessões em matéria de uma união aduaneira e de uma espécie de visa para deslocações internacionais dos turcos na União, mas nada de muito substancial e seguramente muito longe de perspetivas claras de adesão. O Economist interrogava-se ainda se a administração Biden terá ou não realizado algumas concessões ao Presidente turco, designadamente da compra de aviões de combate F-16 aos EUA. Resumindo, entre os fatores visíveis da aceitação turca estarão algumas medidas antiterrorismo que servirão para endurecer a posição turca contra os Curdos, os F-16 comprados aos EUA e a reabertura de algum diálogo (a concretizar) com a União Europeia.
Mas se a decisão turca quanto à entrada da Suécia na NATO ficará a pairar sobre a cimeira da NATO em Vilnius, a questão da Ucrânia deverá ser tratada com todas as pinças, o que deixará muito provavelmente Zelensky bastante irritado. De qualquer modo, esse não era o tema deste post, mas tão só o de refletir sobre o Erdoğan que temos hoje.
Sempre pensei que a Turquia é demasiado importante em termos de equilíbrio mundial para ser entregue de bandeja a uma polarização que branda fúria e outras armas contra a Europa e o Ocidente em geral. Pelas suas características socioeconómicas hoje presentes naquele território, a Turquia acolhe hoje uma população mais jovem e qualificada que não esqueceu o apelo da ocidentalização e de uma civilização urbana moderna, mas também uma população mais envelhecida e menos letrada que vê no Islamismo a representação mais próxima dos seus valores. Não tenho conhecimento nem informação fiáveis que me permitam quantificar a magnitude da presença de um islamismo mais agressivo na sociedade turca e quanto aos Curdos a sua situação interna será sempre muito vulnerável e precária. Mas estou convicto que será sempre preferível que esta tensão moderada seja gerida no interior da própria sociedade turca e que não seja extravasada para outros espaços.
A história ensinou-nos, com o exemplo mais que ilustrativo das Primaveras árabes, que neste tipo de sociedades em tensão cultural declarada, qualquer pretensão de réplica da democracia liberal ocidental tem de ser olhada com a máxima precaução. Qualquer passo em falso pode representar uma passadeira vermelha para as forças islâmicas mais retrógradas.
Não sei se Erdoğan mudou por intuição ou simples reconhecimento da sua crescente fragilidade. Mas o que sei é que, por mais dúvidas que possamos alimentar quanto aos seus métodos internos, a sua liderança tem conseguido manter a tensão entre as duas ou mais Turquias num plano suportável e com pressão controlada. E no mundo que temos já existem demasiadas pressões fora de controlo.
Será que estou a transformar-me num pragmático em matéria de choque de civilizações?
As Primaveras árabes ensinaram-me a trabalhar sobre esta dúvida: será que o contrafactual de uma Turquia em rebelião total contra Erdoğan seria vantajoso em termos de equilíbrio mundial? Não estou nada seguro quanto a isso e terá sido muito provavelmente essa não segurança que terá conduzido à reeleição do Presidente turco. Chamem-lhe pragmatismo ou o que entenderem.
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