segunda-feira, 3 de julho de 2023

QUESTÕES DE DÉFICE E DE DÍVIDA

 


(Pressente-se que, à esquerda do PS e inclusivamente no interior deste, existe alguma tensão de desaprovação quanto à política de equilíbrio orçamental que tem sido seguida pelo ministro das Finanças Fernando Medina com a sua aposta na consolidação de uma trajetória de desendividamento do país, fazendo descer consideravelmente o rácio dívida pública/PIB e colocando Portugal entre os países de evolução mais sólida nesse domínio. Ainda este fim de semana em conversa com Amigo próximo percebi que a minha posição de assentimento da política seguida por Fernando Medina gera controvérsia, atendendo sobretudo ao quadro global de insuficiências em que o país ainda se encontra. Também o meu colega de blogue se referiu ao tema com subtileza, ressalvando um contexto global que nos pode causar alguma perplexidade – temos contas equilibradas e somos metralhados todos os dias com denúncias irrecusáveis de insuficiências gritantes dos nossos sistemas públicos. Daí a eterna questão – o conservadorismo fiscal vale sempre a pena?)

É neste contexto que dedico algumas reflexões ao tema, ressalvando a ideia de que a crítica do conservadorismo fiscal de Medina e, por tabela, de António Costa não deve ser confundida, nem considerada contraditória, com a crítica abundantemente concretizada neste blogue sobre as teses da austeridade nos tempos da crise das dívidas soberanas. Como o analisámos em post recente, nesse período famílias e empresas estavam em processo de pagamento de dívidas e/ou de reconstituição de poupanças, pelo que submeter a atividade fiscal do Governo a uma compressão de despesas teria, como teve efetivamente, efeitos trágicos.

Começo por referir que o ministro Medina deve ter nascido de rabinho para a lua, pois esta conjuntura inflacionista permitiu ao Governo consolidar a sua trajetória de equilíbrio orçamental e desendividamento ao mesmo tempo que dispôs de ampla folga orçamental para concretizar apoios sociais ajustados, sem colocar em risco a referida trajetória. Podemos considerar essa operação uma habilidade orçamental, mas muito dificilmente outro ministro das Finanças iria por outro caminho, dado o enorme potencial de gestão do tempo político que essa abordagem garante a qualquer governo. Sim, em democracia, existe uma coisa que se chama gestão do tempo político. Não vale a pena ficar escandalizado por isso, como se fôssemos madonas ingénuas.

Depois, convém também não esquecer que Portugal não tem apenas um problema de endividamento público. Empresas e famílias, particularmente as primeiras, têm um problema de endividamento, aliás na sequência do problema estrutural e vigente há tantos anos da ainda baixa autonomia financeira das empresas portuguesas.

Pesquisei por isso alguma informação no Banco de Portugal para dar conta desta questão, decorrendo dessa informação que a economia portuguesa se encontra de facto num ambiente de descida de endividamento, embora a partir de valores elevados e que, por isso, aconselham alguma prudência.

 
O gráfico acima descreve em percentagem do PIB a evolução desde 2020 da dívida pública calculada pelo critério de Maastricht, em termos totais e em termos líquidos de ativos de depósitos nas administrações públicas. A evolução descendente a partir do início de 2021 é muito clara e em termos líquidos aproxima-se do ponto simbólico em que se quedará abaixo dos 100% do PIB.
 

Mas se tivermos em conta este outro gráfico relativamente ao endividamento de todo o setor não financeiro (administrações públicas, empresas e particulares), é visível obviamente a trajetória descendente mas ainda com valores superiores a 320% do PIB. 


Posto isto, pode colocar-se a questão: poderia o Governo assumir uma posição de menor conservadorismo fiscal e assumir por essa via alguma abordagem mais ativa ao problema da degradação de alguns serviços públicos?

A minha resposta é afirmativa. Mas essa abordagem menos conservadora deveria assentar numa estratégia muito seletiva de definição de prioridades de intervenção em função da avaliação do estado das carências. Ou seja, não se trataria de um abrir de torneira indiscriminado, mas algo de fortemente associado a um quadro de investimentos e de melhorias de serviços públicos bem definido e ao qual deveriam ser associados acordos com agentes da administração pública responsáveis por tais serviços, eles próprios atingidos pela onda de desvalorização desses mesmos serviços.

O melhor exemplo dessa seletividade recomendada deveria integrar um conjunto de investimentos no SNS, que deveria ser acompanhado de um pacto estratégico com os principais stakeholders, administradores hospitalares, médicos e enfermeiros partilhando uma determinada ambição de correção de níveis de degradação entretanto atingidos. Esta via seria claramente algo de mais transparente do que a utilização relativamente casuística de folgas orçamentais, ressalvada claro está a importância dos apoios sociais para mitigar danos conjunturais designadamente do choque inflacionário.

Obviamente que quem fala em investimentos no SNS pode ser estendido a outras frentes de melhoria de condições de serviços públicos, desde que a sua escolha corresponda ao modelo atrás referido.

 

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