Acedi à sua existência enquanto escritora nas minhas
“encarnações” paulistas, de que já falei neste espaço, e li o seu promissor
romance de estreia, “Os Fios da Memória” (1999). Pouco tempo depois, ganhava o
“Prémio José Saramago” com “Sinfonia em Branco” (2001), que também percorri com
gosto. Mas a melhor prova de que Adriana Lisboa então me agradou sem fascinar
foi que me passaram despercebidos os seus seguintes “Um Beijo de Columbina”
(2003), “Rakushisha” (2007) e “Azul-Corvo” (2010).
Há dias, o nome dela foi-me reativado pelos escaparates da FNAC
e alguma nostalgia brasilense me fez folhear a edição portuguesa de
“Azul-Corvo”, que depois percebi ser muito recente (2012). Comprei, li e
adorei. A sua escrita amadureceu e refinou e Adriana Lisboa tornou-se, indubitavelmente,
uma enorme romancista de língua portuguesa ou, como ela melhor diz, da “língua
que herdámos do colonizador europeu e aclimatámos”. Combinando a dialética das
emoções internas e externas numa irrepreensível dosagem de sobriedade e excesso,
de rigor e criatividade…
Mágica a forma como nos apresenta os dois principais cenários
por que se desdobra a história, curiosamente a sua terra natal e o estado
americano onde atualmente vive – exemplificando: “Em Copacabana, Rio de
Janeiro, havia baratas, amendoeiras, mosquitos, maresia, pombos. Igrejas.
Supermercado Mundial, McDonald’s. Em Lakewood, Colorado, havia coelhos,
cães-da-pradaria, corvos. Igrejas. SuperTarget. McDonald’s.”
Mágica também a forma como nos descreve a acostumação de Vanja a
uma mudança radical e que é em tudo equivalente à por si própria experimentada.
Em termos de crescimento pessoal (“estar ali era estar em trânsito” ou “marcando
o meu território num território que não era meu”) ou quanto ao enquadramento com
que se deparou, fisicamente (“foi a primeira vez na vida que me dei conta do
tamanho relativo das coisas” ou “as árvores na rua pareciam uma inutilidade,
uma tentativa malsucedida de comprovar alguma coisa incomprovável, o ar as
engolia, o espaço as engolia”) ou culturalmente (“disse que não ia poder me
chamar para a sua festa de aniversário porque sua mãe só deixava que ela
chamasse quem já tivesse ido em sua casa pelo menos cinco vezes ou quem em cuja
casa ela já tivesse ido pelo menos cinco vezes” ou “talvez aquela mulher nos
lembrasse que é preciso fazer cerimónia com o mundo, que isto aqui não é de
brincadeira”)…
Em suma, uma narrativa perfeita na sua descontínua estruturação de
várias ações e processos, da busca do passado à descoberta da mãe, de Fernando
como revelação que se constrói à avó como revelação que emerge, das pertenças íntimas
aos relatos da história brasileira, da diáspora sem rumo de todos os
personagens ao alcançar das iniciáticas referências vivenciais com que o livro
termina.
Adriana, tal como ocorre com a sua Vanja, mostra-se hoje
definitivamente capaz de combinar a ideia de não existir “um mundo mapeável” com a de que “navegar
é preciso”. Ou seja, de um “smooth sailing”, cujo sentido é o de avançar sem
dificuldades – “smooth era a
qualidade lisa e acetinada das águas, sailing
era o verbo da vela que inchava com o vento e cruzava oceanos inteiros”…
Sem comentários:
Enviar um comentário