quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

“SMOOTH SAILING”


 
Acedi à sua existência enquanto escritora nas minhas “encarnações” paulistas, de que já falei neste espaço, e li o seu promissor romance de estreia, “Os Fios da Memória” (1999). Pouco tempo depois, ganhava o “Prémio José Saramago” com “Sinfonia em Branco” (2001), que também percorri com gosto. Mas a melhor prova de que Adriana Lisboa então me agradou sem fascinar foi que me passaram despercebidos os seus seguintes “Um Beijo de Columbina” (2003), “Rakushisha” (2007) e “Azul-Corvo” (2010).
 
Há dias, o nome dela foi-me reativado pelos escaparates da FNAC e alguma nostalgia brasilense me fez folhear a edição portuguesa de “Azul-Corvo”, que depois percebi ser muito recente (2012). Comprei, li e adorei. A sua escrita amadureceu e refinou e Adriana Lisboa tornou-se, indubitavelmente, uma enorme romancista de língua portuguesa ou, como ela melhor diz, da “língua que herdámos do colonizador europeu e aclimatámos”. Combinando a dialética das emoções internas e externas numa irrepreensível dosagem de sobriedade e excesso, de rigor e criatividade…
 
Mágica a forma como nos apresenta os dois principais cenários por que se desdobra a história, curiosamente a sua terra natal e o estado americano onde atualmente vive – exemplificando: “Em Copacabana, Rio de Janeiro, havia baratas, amendoeiras, mosquitos, maresia, pombos. Igrejas. Supermercado Mundial, McDonald’s. Em Lakewood, Colorado, havia coelhos, cães-da-pradaria, corvos. Igrejas. SuperTarget. McDonald’s.”
 
Mágica também a forma como nos descreve a acostumação de Vanja a uma mudança radical e que é em tudo equivalente à por si própria experimentada. Em termos de crescimento pessoal (“estar ali era estar em trânsito” ou “marcando o meu território num território que não era meu”) ou quanto ao enquadramento com que se deparou, fisicamente (“foi a primeira vez na vida que me dei conta do tamanho relativo das coisas” ou “as árvores na rua pareciam uma inutilidade, uma tentativa malsucedida de comprovar alguma coisa incomprovável, o ar as engolia, o espaço as engolia”) ou culturalmente (“disse que não ia poder me chamar para a sua festa de aniversário porque sua mãe só deixava que ela chamasse quem já tivesse ido em sua casa pelo menos cinco vezes ou quem em cuja casa ela já tivesse ido pelo menos cinco vezes” ou “talvez aquela mulher nos lembrasse que é preciso fazer cerimónia com o mundo, que isto aqui não é de brincadeira”)…
 
Em suma, uma narrativa perfeita na sua descontínua estruturação de várias ações e processos, da busca do passado à descoberta da mãe, de Fernando como revelação que se constrói à avó como revelação que emerge, das pertenças íntimas aos relatos da história brasileira, da diáspora sem rumo de todos os personagens ao alcançar das iniciáticas referências vivenciais com que o livro termina.
 
Adriana, tal como ocorre com a sua Vanja, mostra-se hoje definitivamente capaz de combinar a ideia de não existir “um mundo mapeável” com a de que “navegar é preciso”. Ou seja, de um “smooth sailing”, cujo sentido é o de avançar sem dificuldades – “smooth era a qualidade lisa e acetinada das águas, sailing era o verbo da vela que inchava com o vento e cruzava oceanos inteiros”…

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