A chegada aos ecrãs da nova experiência cinematográfica do controverso realizador australiano Baz Luhrmann levou-me a um exercício que triplamente recomendo, sendo arbitrária a ordem dos fatores: ir ver o filme a uma sala perto de si, rever a mais inesquecível das cinco versões gatsbyanas existentes (a de Jack Clayton, 1974), reler o livro de Scott-Fitzgerald (na sua língua original ou na excelente tradução de José Rodrigues Miguéis para a Presença).
Sou cada vez mais dos que pensam que, sendo a criação um ato essencialmente individual, faz pouco sentido procurar ler a qualidade de uma obra adaptada pelo seu caráter mais ou menos fidedigno em relação à obra de referência. Não é esse o meu ponto, pois. Nem mesmo o de forçar a procura de um qualquer critério de hierarquização mais ou menos objetiva para os três trabalhos em questão.
Em termos estritamente cinematográficos, começo por me confessar invadido por uma estranha sensação de mixed feelings. Com efeito, não imaginava possível qualquer disputa ao glamour irradiado pelo trabalho de Clayton ou que Jay e Daisy pudessem ser diferentes de Robert Redford e Mia Farrow. Até ter visto a Jazz Age (re)tratada por Luhrmann ou o desempenho de Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan nos respetivos papéis – o que vale também, aliás, para outros personagens, com especial destaque para Nick Carraway e a sua exímia interpretação por Tobey Maguire.
Em seguida, quero sublinhar que gostei da energia e do fulgor do filme que abriu Cannes e que não me reconheço, portanto, no criticismo intelectualmente correto com que a maioria dos especialistas recebeu o filme. Nem quanto aos seus excessos de liberdade adaptativa em relação ao romance – caso, p.e., da narrativa de Nick a partir de uma presença num sanatório –, nem quanto a um certo pot-pourri musical – que não destoa –, nem quanto ao modo como “enche os olhos do espectador com uma leitura vistosa, operática, barroca do romance de Fitzgerald para melhor chegar à sua essência” – et pour cause…
Aqui chegado, devo concluir corroborando a opinião daqueles que insistem na genialidade do livro. Pela densidade e angústia emocional que consegue transmitir, tão-só com base numa subtil e prodigiosa manipulação das palavras. Pelo rigoroso e apelativo enquadramento que só a literatura sabe conferir a frases memoráveis, como o conselho e a sugestão do pai de Nick (“quando te sentires com vontade de criticar alguém, lembra-te disto: nem todos tiveram neste mundo as vantagens que tu tiveste” e “o senso das decências fundamentais da vida é um dom desigualmente repartido à nascença”) ou o desabafo de Daisy após o parto (“estou contente que seja menina. E oxalá seja uma cabeça no ar: a melhor coisa que uma rapariga tem a fazer hoje neste mundo é ser bonita e leviana.”) ou, ainda, a caraterização de Gatsby como um “homem de estatura” (“se a personalidade é uma cadeia ininterrupta de gestos bem sucedidos, então havia nele alguma coisa de transcendente, uma espécie de supersensibilidade às promessas da vida”). Pelo modo inigualável como, descrevendo o drama da indiferença e terminando em tragédia, deixa que a esperança fique em suspenso – “assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado”; mesmo sabendo que este não se repete nem pode refazer-se…
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