Como passageiro frequente do Alfa pendular tenho
o ouvido preparado para o registo de histórias que cruzam regularmente o
comboio, seja no vibrar dos telemóveis, seja na comunicação fortuita dos
corredores ou dos lugares.
Contexto: viagem do Porto para Lisboa. Uma jovem
extrovertida troca de lugar para poder circular no sentido da marcha e
instala-se confortavelmente nos lugares imediatamente anteriores ao meu. Em
Coimbra, entram novos passageiros com a agitação normal de um comboio em
Portugal, onde entre a tralha que demora tempo a acomodar, a iliteracia dos
lugares e as usuais trocas de carruagem e até de comboio tudo demora até entrar
em acalmia. Um velhote extremamente simpático demanda o lugar em que a jovem
está instalada, esta justifica-se com o enjoo que a viagem contra o sentido da
marcha lhe provoca e o velhote compreensivo e bem disposto senta-se no lugar
vago imediatamente ao lado. A partir desse encontro/desencontro bem resolvido e
apesar da diferença de idades, uns bons 60 anos, inicia-se um diálogo relaxado
que comecei inadvertidamente a seguir. Da jovem nada de particularmente
estimulante exceto a sua predisposição para o diálogo. Pelo contrário, do
velhote desprende-se um testemunho do Portugal profundo. Reformado,
ex-balconista num dos grandes armazéns do Chiado, com uma reforma “daquelas que
não sofreu cortes”, por isso muito baixa, vem no início de todos os meses, que
não dá para mais, visitar a mulher, praticamente sem reforma, com Alzheimer em
estado adiantado, internada num lar da Misericórdia local em Sangalhos. Do seu
relato depreende-se uma profunda admiração e devoção pela mulher incapacitada. Todos
os meses a sua migração começa com o primeiro comboio rápido de Lisboa para
Coimbra a que se segue a viagem para Sangalhos que não consegui perceber como é
feita. O regresso faz-se no princípio da tarde, imagino no Alfa que cruza
Coimbra por volta das 14.45. Nas suas palavras, não se regista um azedume
sequer. Apenas a confissão de uma tristeza, quanto ao risco aleatório das suas
visitas do início de mês. Umas vezes encontra a mulher bem, outras tem a deceção
de a encontrar projetando a inevitabilidade de uma doença implacável. A solidão,
vivida e pressentida, é a ponte que liga as sucessivas visitas a Sangalhos. O
que António Lobo Antunes faria desta história! Poucas horas depois, receberíamos
a notícia do nascimento do neto Francisco e a deslocação para o ver pela
primeira vez, o que atenuaria o impacto desta história de comunicação furtiva no
interior do Alfa. A dignidade daquele homem tocou-me. Que país este e que gente
notável!
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