sábado, 8 de junho de 2013

α REGISTOS



Como passageiro frequente do Alfa pendular tenho o ouvido preparado para o registo de histórias que cruzam regularmente o comboio, seja no vibrar dos telemóveis, seja na comunicação fortuita dos corredores ou dos lugares.
Contexto: viagem do Porto para Lisboa. Uma jovem extrovertida troca de lugar para poder circular no sentido da marcha e instala-se confortavelmente nos lugares imediatamente anteriores ao meu. Em Coimbra, entram novos passageiros com a agitação normal de um comboio em Portugal, onde entre a tralha que demora tempo a acomodar, a iliteracia dos lugares e as usuais trocas de carruagem e até de comboio tudo demora até entrar em acalmia. Um velhote extremamente simpático demanda o lugar em que a jovem está instalada, esta justifica-se com o enjoo que a viagem contra o sentido da marcha lhe provoca e o velhote compreensivo e bem disposto senta-se no lugar vago imediatamente ao lado. A partir desse encontro/desencontro bem resolvido e apesar da diferença de idades, uns bons 60 anos, inicia-se um diálogo relaxado que comecei inadvertidamente a seguir. Da jovem nada de particularmente estimulante exceto a sua predisposição para o diálogo. Pelo contrário, do velhote desprende-se um testemunho do Portugal profundo. Reformado, ex-balconista num dos grandes armazéns do Chiado, com uma reforma “daquelas que não sofreu cortes”, por isso muito baixa, vem no início de todos os meses, que não dá para mais, visitar a mulher, praticamente sem reforma, com Alzheimer em estado adiantado, internada num lar da Misericórdia local em Sangalhos. Do seu relato depreende-se uma profunda admiração e devoção pela mulher incapacitada. Todos os meses a sua migração começa com o primeiro comboio rápido de Lisboa para Coimbra a que se segue a viagem para Sangalhos que não consegui perceber como é feita. O regresso faz-se no princípio da tarde, imagino no Alfa que cruza Coimbra por volta das 14.45. Nas suas palavras, não se regista um azedume sequer. Apenas a confissão de uma tristeza, quanto ao risco aleatório das suas visitas do início de mês. Umas vezes encontra a mulher bem, outras tem a deceção de a encontrar projetando a inevitabilidade de uma doença implacável. A solidão, vivida e pressentida, é a ponte que liga as sucessivas visitas a Sangalhos. O que António Lobo Antunes faria desta história! Poucas horas depois, receberíamos a notícia do nascimento do neto Francisco e a deslocação para o ver pela primeira vez, o que atenuaria o impacto desta história de comunicação furtiva no interior do Alfa. A dignidade daquele homem tocou-me. Que país este e que gente notável!

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