quarta-feira, 19 de junho de 2013

DA MEMÓRIA


Habito a zona oriental do Porto e não desço a Avenida da Boavista até ao fundo com grande assiduidade. Por isso, quase me tinha passado a próxima realização do famigerado “circuito dos calhambeques”. Razões pessoais levaram-me ontem à Foz e, deste modo, a recuperar a magnífica parafernália ali instalada. E, com ela, a reavivar os termos da saudosa crónica “Eu acuso”, publicada no “Público” de 1 de maio de 2005 a propósito de um cenário precursor. Desafio o leitor a adivinhar o nome do seu autor, alguém que então se pronunciava como segue.

Receio que esta crónica não cumpra os princípios de isenção que sempre nortearam as minhas crónicas. Compreenderá o leitor que, entrincheirado em casa, na zona ocidental da Avenida da Boavista, há mais de um mês, afetado por dificuldades diárias de entrar ou sair do meu portão de carro ou a pé, vendo-me neste caso forçado a circular entre o trânsito porque os passeios desapareceram, acordado em dias feriados pelo ruído ensurdecedor e pela vibração de pás escavadoras e camiões, geradores e betoneiras, perturbado pelo coro de buzinas dos automobilistas que se impacientam com as obras e sujeito a cortes no fornecimento de água, me sinta à beira de um ataque de nervos. Creio, contudo, que há motivos de indignação.

Estive numa sessão promovida pela câmara e fiquei esclarecido. A autarquia ainda não sabe, ao certo, se o metro virá a utilizar o canal central da avenida. Se assim for, os trabalhos que aí estão a decorrer serão custeados pela Metro do Porto como obra de ‘beneficiação’. Entretanto (e na dúvida), avançam as obras, com dois objetivos distintos:
   - o encanamento das águas pluviais da Avenida da Boavista, no intuito de as desviar para o Parque da Cidade, evitando o alagamento do malfadado parque de estacionamento subaquático do Castelo do Queijo;
   - a adaptação da Avenida da Boavista, da Rua do Parque da Cidade, da Rua da Vilarinha e do viaduto do parque para uma corrida de carros antigos.

Ora, nenhum dos objetivos justifica essas obras. O primeiro é razoável, mas não estou certo de que o desvio das águas resolva o problema do nível freático; as corridas, uma obstinação de Rui Rio, que adora carros antigos, dispensavam tão grande investimento de risco.

Que se celebre o Circuito do Porto trazendo automóveis antigos seria lícito se fosse realizado com contenção, sem estas obras incómodas e megalómanas, encobertas por expectativas parolas e fantasiosas de públicos e de mediatismo internacional. Num circuito histórico em versão curta, não faz sentido que se invoquem regras de segurança da FIA, porque, em corridas com bólides fósseis, saídos de coleções ou de museus, não se espera verdadeira competição que comporte grandes riscos à integridade de pilotos e máquinas. De qualquer forma, se os carros são da época, então deveriam também percorrer um circuito da mesma época, e seria interessante rever a perícia da condução com árvores, paralelos, fardos de palha e trilhos.

Mas o que, na verdade, aflige são as obras e as suas consequências. É irresponsável arrancar trilhos de elétrico que nunca foram utilizados e que podem vir a fazer falta e foi criminoso o corte das árvores da Avenida da Boavista. É, por fim, inaceitável que se fale da pesada herança e se gaste uma fortuna pela vã glória de um efémero exibicionismo.

O que mais incomoda é o escandaloso desrespeito da Câmara do Porto pelos cidadãos. As obras aceleradas têm causado o maior dos transtornos, e só mesmo o engenheiro Abel, reformado do nosso trânsito e responsável pela mobilidade do Grande Prémio, não percebeu que interromper a Rua da Vilarinha e fazer obras no viaduto em simultâneo iria criar o caos nas ligações Porto-Matosinhos. Asfaltaram as faixas centrais, mas a pressa das obras fez com que se cortassem em simultâneo as quatro faixas laterais. O trânsito, convivendo em duas faixas centrais com os aterrados peões e com todo o vaivém das máquinas, está caótico, mas o pior está para vir.

Haverá três dias de corridas, imagine-se, o que quer dizer que, com a montagem e a desmontagem de barreiras e de rails, teremos quatro ou cinco dias em que não se poderá circular nesta zona da cidade. Nós, os sacrificados moradores, estaremos durante esse tempo com os acessos vedados.

É esta, pois, a minha querida Beirute durante o dia, onde, valha a verdade, tem havido tréguas e paz durante a noite. Agora, entre o caos do trânsito e o desespero dos moradores, chega-nos a Queima das Fitas no Parque da Cidade. Vamos ter, para além da música aos berros até de manhã, o dobro das buzinas a infernizar-nos o sono. O vereador Cutileiro acha que vale a pena. A nós, resta-nos sonhar, porque temos memória e, felizmente, eleições em Outubro.


Temos memória, nós? Mas quais nós? E quais de nós?
 

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