terça-feira, 21 de junho de 2016

O AUTISMO DA MACROECONOMIA DE HOJE (um pouco técnico)




(Progress and Confusion – The State of Macroeconomic Policy é uma obra da MIT Press que me acaba de chegar às mãos e que sistematiza os principais resultados de uma conferência do FMI de abril de 2015. É uma boa oportunidade para tentar compreender o autismo e a inércia da macroeoconomia dominante em compreender que 2007-2008 constitui um marco de mudança)

Iniciei as minhas tarefas universitárias na segunda metade dos anos 70 com praticamente a chamada estagflação (coexistência de desemprego e de níveis elevados de variação dos preços) a questionar vivamente a teoria macroeconómica então predominante. Na altura, predominava já uma síntese adaptada da teoria keynesiana, que costuma ser associada à síntese de Hicks e que deu origem à muito conhecida dos alunos de macroeconomia abordagem IS-LM. Em formações mais avançadas, ensinava-se uma fórmula mais avançada dessa síntese, por alguns designada de neo-keynesianismo que haveria de influenciar a grande maioria dos modelos macroeconómicos que suportavam então a ação dos Bancos Centrais ou dos principais organismos de previsão macroeconómica.

A estagflação da época desafiava sobretudo a conhecida relação entre taxa de inflação e taxa de desemprego, entendida na altura essencialmente como uma relação de pendente negativa, ou seja, a uma taxa de inflação mais elevada tenderia a corresponder uma menor taxa de desemprego.

Mais importante do que a complexidade do puzzle que a estagflação colocava à chamada curva de Philips, foi a forte contraofensiva neoclássica que Robert Lucas Jr. e Thomas Sargent lançaram à política económica de raiz keynesiana. Não é propósito deste post embrenhar-se pela crítica de Lucas à política económica. É antes importante assinalar que o argumento visava algo em torno desta ideia: a política económica pública pode ser ineficaz ou até nefasta (a diferença entre estas duas avaliações não é despicienda) porque os agentes económicas podem antecipar os seus efeitos e reagir em conformidade, anulando a sua observação futura.

Este argumento tem várias variantes. Duas merecem referência particular.

A primeira variante prende-se com a possibilidade dos agentes económicos anteciparem o despesismo público. Uma despesa pública mais elevada hoje deve um dia ser financiada por impostos e por isso os consumidores podem poupar hoje para poderem pagar esses impostos amanhã. É um argumento que não tem prova possível, porque é inter-temporal. Por ironia das ironias, é conhecido pelo princípio da equivalência Ricardiana, metendo David Ricardo ao barulho quando o seu contributo para a teoria económica nem por sombras deve ser por este aspeto recordado.

A segunda variante é o célebre argumento do crowding-out do investimento público. Para ser financiado por endividamento esse investimento público pressionaria em alta as taxas de juro e por essa via tenderia a reduzir o investimento privado, anulando os efeitos da política pública. Em ambiente de taxas de juro nulas ou negativas como o que vivemos hoje, o argumento não tem ponta por onde se lhe possa pegar.

Embora na altura bastante distante e crítico desta contraofensiva neoclássica, lembro-me então de reconhecer que a teoria macroeconómica poderia ser acusada de muitas coisas, mas não de autismo, de inércia ou indiferença face às evidências da época. Valeria por certo uma tese de doutoramento ou várias interrogar-nos sobre as razões que terão determinado o campo fértil para o florescimento da contraofensiva neoclássica, ou por outras palavras, o enterro prematuro de Keynes e dos seus fundamentos macro para a política macroeconómica. Mas a verdade nua e crua é que a contraofensiva neoclássica utilizou a preceito a estagflação e a incapacidade dos modelos macro da época para prever o fenómeno para substituir o rigor teórico e lógico de Keynes pelo rigor do formalismo, construído em função de pressupostos que não correspondem à economia real em que vivemos, trabalhamos, investimos ou simplesmente consumimos. A política económica e a abordagem keynesiana passou rapidamente a ser associada ao esquerdismo público e ao favorecimento das burocracias de Estado e entre pares grande parte dos economistas não resistiu à sereia do formalismo. Por mais que o prestígio intelectual de Lucas e seus seguidores mereça alguma atenção, há aqui uma convergência de certas ideias com uma agenda política de desacreditação do público, de glorificação do mercado e da livre iniciativa, que encontrou nas teses de Lucas as tábuas sagradas para tão grande saga de varrimento da conflitualidade da economia.

Pois bem, 2007-2008 representou um grande murro nas trombas dos grandes arautos da contraofensiva neoclássica. Um murro daqueles que deixam marcas, que não apenas o atordoamento do embate. A prova é que alguns dos expoentes dessa contraofensiva transformada em poderio instalado reagiram entre outras maneiras por negação da evidência. O argumento então utilizado da falência dos modelos macro na previsão da estagflação como fonte de demolição da teoria reinante parece já não poder ser aplicado. 2007-2008 seria uma turbulência passageira. Recordo-me, como o tempo passa neste blogue, de ter aqui mencionado pela primeira vez em Portugal a relevância das entrevistas que John Cassidy, economista da New Yorker, fez aos gurus da economia de Chicago e como praticamente todos eles, Richard Posner foi a única exceção, negaram a evidência, continuando a confiar na santa racionalidade dos mercados. De facto, perder poder é uma grande chatice, até porque se trata de poder bem remunerado, afinal as agendas políticas pagam bem aos santos da racionalidade.

O argumento da transitoriedade caiu por terra com a passagem do tempo. Oito anos são já uma eternidade. Mas importa perguntar por que razão a macroeconomia não teve face às consequências de 2007-08 uma reação similar à que ocorreu face à revelação da estagflação dos anos 70? Porque não aconteceu uma contraofensiva de sinal contrário? Haverá aqui diferenças de valia intelectual entre quem protagonizou a primeira e poderia ter gerado a segunda?

A minha explicação aponta para algo de muito simples: a contraofensiva neoclássica dos anos 70 teve a suportá-la e a financiá-la em termos de investigação e de notoriedade uma poderosa agenda política privatizante e glorificadora do mercado; a possível contraofensiva que hoje poderia acontecer não tem essa agenda política de suporte e nas universidades o poder instalado pela contraofensiva dos 70 está ainda fortemente enraizada. Krugman interrogou-se recentemente sobre o problema e Brad DeLong acaba de realizar uma conferência notável sobre as razões que justificam o primado ainda observado do princípio da confiança dos mercados como racionalizador da austeridade em contexto de lower zero bound. Nos últimos tempos porém, a macroeconomia tem-se agitado. Em 2012, Summers e DeLong assinaram um artigo decisivo para demonstrar que, em contexto de zero lower bound, o endividamento (dos que o podem fazer, esclareça-se para um qualquer tolinho do Bloco começar a asneirar) colhe benefícios e gera pelo estímulo fiscal sobre o produto a compensação mais do que necessária. Gauti Eggertsson e outros (incluindo o próprio Summers) acabam de publicar na NBER – USA um artigo relevante para explicar a propagação internacional da estagnação secular. O livro que serve de mote a este post, organizado por Olivier Blanchard, Raghuram Rajan, Kenneth Rogoff e Lawrence Summers traz para a academia a discussão no interior de uma conferência do FMI. Mas continua a faltar a agenda política que poderia enquadrar a contra-contraofensiva. Dito de outro modo, a crise da social-democracia e a má consciência crítica que a esquerda democrática e liberal deixou que se instalasse em relação à intervenção pública prejudicam seriamente a revisão do estado das coisas. Ou dito ainda de outra maneira, já não há economistas com o poder decisivo de convencer políticos mais arrojados. Tristes tempos estes.

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