sábado, 18 de junho de 2016

SIMONE A BATER NO PONTO


Não é frequente acontecerem-me aquisições de livros feitas de impulso, mas foi esse o facto no caso em apreço. E o certo é que esta novela de Beauvoir, inicialmente escrita para integrar uma recolha que foi publicada sob o título “La Femme Rompue” e que acabou por ser excluída da dita obra por razões de espaço e de critério da autora e só postumamente publicada, é uma verdadeira preciosidade. Nela se evocam, portentosamente, os mal-entendidos vividos, durante uma viagem à União Soviética dos anos 60, por um casal de professores reformados de meia-idade (mais à luz da nossa perceção atual do que da realidade da época em que ser sexagenário já correspondia a uma irremediável aproximação do final), numa magistral combinação de dúvidas e desilusões de ordem política com reflexões e encruzilhadas de natureza sentimental. 

Algumas passagens entre o que há de mais profundo e o absolutamente delicioso, apenas para minimamente pontuar esta minha recomendação de uma forçosa leitura (embora talvez apenas depois de se atingir uma certa idade):

· “Acreditava que a verdade sobre a sua existência e sobre si próprio não lhe pertencia: estava obscuramente disseminada por toda a Terra; para a conhecer era necessário interrogar os séculos e os lugares; por isso gostava tanto de história e de viagens. Mas enquanto podia estudar serenamente o passado refratado nos livros, a descoberta de um país desconhecido – extravasando na sua viva exuberância tudo o que dele se podia saber – provocava-lhe sempre vertigens.”

· “O socialismo acabaria por tornar-se uma realidade. Um dia triunfaria em todo o mundo. Era apenas um período de refluxo. O mundo inteiro – exceto talvez a China, mas o pouco que se sabia era duvidoso e nada tranquilizador – iria atravessar um período de refluxo. Mas ia-se sair dele. Era possível, era provável. Uma probabilidade que André nunca iria corroborar. Para os jovens, aquele momento não era pior do que os outros, não era pior do que aquele que vivera aos vinte anos; mas, para eles, estes anos significavam um ponto de partida e, para ele, o fim da linha: uma queda. Com a sua idade, já não iria assistir a esse possível volte-face. O caminho que conduz ao bem é pior do que o mal, dissera Marx. Quando somos jovens e temos pela frente uma ilusória eternidade, pulamos de um salto para o outro lado da estrada; mais tarde, deixamos de ter força para fazer face aos ditos custos imprevistos da História e consideramo-los muitíssimo elevados. Tinha confiado na História para justificar a sua vida: agora já não confiava.”

· “Ruminava pensamentos melancólicos. Como podia Macha achar que envelhecer era enriquecedor! Muitas pessoas acreditam nisso. Os anos dão ao vinho o aroma, aos móveis a patine, aos homens a experiência e a sabedoria. Cada momento seria abrangido e justificado pelo momento seguinte que prometeria um futuro melhor, até que os fracassos sejam finalmente reparados. ‘Cada átomo de silêncio é oportuno ao fruto maduro’. Nunca dera para esse peditório. Mas também não via a vida do mesmo modo que Montaigne, como uma sucessão de mortes: o recém-nascido não é a morte do embrião, nem a criança a do recém-nascido. Rejeitava aliás a ideia de Fitzgerald: ‘A vida é um processo de degradação’. Já não tinha o mesmo corpo que aos vinte anos, a sua memória enfraquecera um pouco, mas não se sentia diminuído.”

· “Nicole parecia não ter consciência da idade que tinha; ele não falava da sua, mas pensava muitas vezes nela, revoltado. Durante muito tempo – por má-fé, por descuido, arranjando desculpas – recusara ver-se como um adulto. No fundo, aquele professor, aquele pai de família, aquele quinquagenário, não era ele. E eis que a vida se abatia sobre ele; nem o passado nem o futuro lhe ofereciam mais álibis. Era um sexagenário, um velho reformado que não tinha feito nada.”

· “Diziam-lhe muitas vezes isso: tem um ar jovem, é jovem. Cumprimento ambíguo que anuncia penosos amanhãs. Manter a vitalidade, a alegria, a presença de espírito, é manter-se jovem. Logo a quota-parte da velhice é a rotina, a morosidade, a preguiça. Dizem: a velhice não existe, não é nada; ou então, é muito bonita, muito comovente; mas quando lá chegam, mascaram-ma pudicamente com palavras mansas. Macha disse: são jovens, mas dera o braço a Nicole.”

· “As duas imagens que tinha da sua vida, do passado, do presente, não se ajustavam. Existia um erro algures. Aquele instante mentia: não era ele, não era ela, esta cena passava-se noutro local... Infelizmente, não! O passado é que era uma miragem: acontece constantemente. Quantas mulheres se enganam sobre a sua vida, durante toda a vida.”

· “Não havia saída. Continuariam a viver juntos, ela dissimularia as queixas, quantos casais vegetam assim, resignados, num compromisso. Na solidão. Sinto-me só. Ao lado de André sinto-me só. Convencer-me disso.”

E termino: parece-me uma missão impossível alguém conseguir ser tão lucidamente tocante/inquietante em tão poucas páginas de escrita...

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