quarta-feira, 17 de outubro de 2012

REGRESSO À BASE


(Bradford DeLong e Lawrence Summers)


Depois de algum trabalho no Funchal, regresso a alguns debates que têm marcado a opinião pública mais especializada seja dentro de portas, seja na comunidade internacional. E o regresso à base é sobretudo um regresso à indeterminação.
Em matéria de indeterminação, não posso deixar de partilhar um pequeno pormenor do seminário em que participei no Funchal. Uma responsável da Comissão Europeia apresentava a calendarização de algumas responsabilidades dos países da coesão em matéria de reportes de monitorização e de avaliação que devem assegurar. E no meio da bateria de datas apareceu uma, 2023, que me despertou de imediato um sorriso de interrogação. Em primeiro lugar, pela primeira vez aparecia-me uma data que provavelmente já não me dirá rigorosamente nada em termos de interesses de vida ativa plena. Espero que ainda corresponda a algum horizonte de vida. Mas, mais do que o aspeto pessoal, o que estava ali em causa é que ninguém naquela sala bem preenchida conseguiria atribuir aquela data algum significado especial, dada a nebulosidade de todo o período que nos medeia até a essa referência longínqua.
O alarido e as sucessivas réplicas que a autocrítica do FMI sobre os efeitos recessivos (claramente subestimados) das políticas de austeridade está a provocar em tudo que é jornal e comentário são bem sintomáticos da nebulosidade a que me referia. O FMI, convém recordá-lo, tem um papel entre outros de supervisão da economia mundial e é nesse quadro que a sua autocrítica tem de ser interpretada. Ou seja, abstraindo agora da seriedade ou da inconsistência intrínseca das posições alemãs, é hoje claro que a economia mundial apresenta sinais de afrouxamento preocupante. Já aqui sublinhei que podemos estar numa transição ainda obscura de ciclo longo do capitalismo e que, nessa base, haverá por conseguinte um problema inevitável de interrogação sobre fontes de crescimento que pode manter-se por mais tempo do que o esperado. Mas, ignorando por agora essa possibilidade, no quadro da economia mundial, a exequibilidade das teses da bondade das vias exportadoras (“export-led growth”) exige economias com potencial de absorção de importações. O que simplesmente o FMI vem refletir é a ponderação dos efeitos de um tal afrouxamento sobre designadamente as economias emergentes e sobre as economias a quem é pedida uma radical reafetação de recursos pró mercados externos (Portugal incluído).
A autocrítica que provocou tamanho brado era antecipável sobretudo para quem não tem uma fidelidade canina ao mito da austeridade redentora, como a que o cada vez mais isolado Vítor Gaspar (com o senhor Borges em proteção recíproca) respira por todos os poros. Há menos de um ano, um artigo crucial de Bradford DeLong e Lawrence Summers (muito discutido na comunidade académica americana e com réplicas colaterais no debate político americano de hoje), que haveremos de aqui comentar apesar do seu caráter bastante técnico, tinha posto os pontos nos iis nesta matéria mostrando evidências que o estímulo fiscal (ou o seu contrário) tinha virtualidades (efeitos nefastos) para além do esperado sobretudo em contextos de taxas de juro praticamente nulas.
Isto significa uma coisa muito importante. Não é necessário invocar economistas radicais, regra geral fora do chamado espaço da governação, mas que o podem ocupar em cenários mais extremos, para mostrar que o rei vai nu nesta matéria. Há pensamento económico credível para os inefáveis mercados que podem fundamentar perspetivas bem mais promissoras de gestão dos equilíbrios da economia mundial nos tempos de hoje das que continuam vidradas na desalavancagem das famílias, das empresas, da banca e dos governos de uma só assentada.
Hoje, está cada vez mais claro, que a via da austeridade punitiva e pretensamente redentora não tem a suportá-la pensamento económico credível, mesmo no plano do pensamento em regra associado à governação em economias de mercado. Pelo menos nesta matéria, aos economistas de pensamento não podem ser assacadas responsabilidades futuras pelo plano inclinado em que a economia mundial começa a resvalar. Haverá sempre, claro está, economistas pseudo racionalizadores da via punitiva. Mas não são economistas de pensamento. Por mais cara que tenha sido a sua formação, e é de facto muito cara se tivermos em conta nessa valoração as externalidades negativas que estão a provocar sobre algumas economias e sobre a economia mundial, são meros títeres de posicionamentos políticos que não vêm mais do que alguns palmos de nacionalismo económico ou se calhar não apenas económico. Vale a pena ler toda a biografia de Keynes (Skidelski) para compreender que nos períodos mais bélicos que Keynes viveu foram tempos em que muitos desses economistas títeres se passearam e à sua vacuidade. E quando o pensamento rigoroso deixa de fundamentar as grandes decisões que levam aos equilíbrios mundiais o ambiente é de guerra económica potencial. Dispenso-me de recordar toda a sequência de efeitos possíveis de uma guerra económica.

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