“O fim de Outubro trouxe de volta o rito anual de atrasar os
relógios, adensando a escuridão que caía sobre as nossas tardes e deprimindo
ainda mais a nação. Novembro começou com outra vaga de frio e com chuva quase
diária. O tema de todas as conversas era a ‘crise’. (…) A sensação geral é que
estávamos a encaminhar-nos para qualquer coisa grave, mas difícil de prever e
impossível de evitar. Havia a suspeita de que o ‘tecido social’ estava a
desfazer-se, embora ninguém soubesse muito bem o que isso ia implicar.”
Não dá uma estranha sensação de proximidade? A verdade é que
apenas se trata de um excerto do último livro de Ian McEwan (abaixo
caricaturado por James Ferguson para o “Financial Times”) e de uma passagem que
se reporta à realidade de Londres no início dos anos 70.
O romance intitula-se “Sweet Tooth” no original e teve o seu
lançamento mundial na Festa Literária Internacional de Paraty – talvez em
homenagem à paixão pelo Rio de Janeiro que assaltou o filho do autor – sob o
título “Serena” (o nome da protagonista), tendo sido entretanto objeto de uma
terceira redenominação na edição portuguesa (“Mel”). McEwan descreveu-o como
“uma celebração do ato de ler” e como “uma autobiografia deslocada”. E
explicitou a seguinte junção de três elementos para o caraterizar mais cabalmente:
“escrever uma celebração da imaginação, escrever uma investigação de espiões e
escrever uma história de amor que acabasse de uma maneira feliz”.
Na sua crítica do livro na “Ípsilon”, Helena Vasconcelos sublinha
acertadamente que “poucos romancistas serão tão ardilosos na construção de
tramas quanto Ian McEwan”. E explica-se: “É com aparente simplicidade que
arrasta o leitor de logro em logro, de artimanha em artimanha, de ilusão em
ilusão, de armadilha em armadilha, num jogo só comparável à cena na sala de
espelhos no filme ‘A Dama de Xangai’ de, e com, Orson Welles”.
Uma obra em que o criador, assumindo novamente uma personagem
feminina, tece assim uma tão notável dialética/fusão entre a realidade e a
ficção que faz jus integral ao seu declarado prazer maior de manipulação do
leitor…
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