O casamento desavindo
da maioria persiste. Mas as fissuras na maneira de o viver são cada vez mais
evidentes, sobretudo se tivermos em conta não apenas os protagonistas diretos,
mas também os seus porta-vozes informais e de circunstância, representados em
personalidades que estão fora da governação. E nada melhor do que as jornadas
parlamentares para o evidenciarem, apesar de todos os apelos à conjugação de
esforços na esfera parlamentar.
Portas, sempre o mais
arguto e com maior intuição política, é claro no seu fino apelo a uma diplomacia
mais inteligente na supervisão e negociação do acordo de resgate financeiro. Percebeu
(ao fim de tanto tempo, como é possível …) que o teatro das negociações se
alterou, que há mais nuances, que o FMI tem hoje uma visão dos efeitos da
abordagem seguida na economia mundial mais matizada, por mais estrangulamentos
que existam na instituição entre o seu pensamento no topo e a sua transmissão
aos múltiplos processos em que a instituição está envolvida. É tempo demais
para compreender essa inevitabilidade. Aliás, ao contrário do que muito boa
gente hoje rendida à crítica do mito da austeridade expansionista então admitiu
(incluindo aqui gente como Vasco Pulido Valente e José Pacheco Pereira), a
eleição de Hollande representou uma significativa mudança no teatro das
negociações. O desdém com que essas personalidades então receberam essa eleição
deve-lhes hoje causar algum amargo de boca. Não perceberam que na eleição de
Hollande havia duas dimensões: a francesa “tout
court” sobre a qual podemos alimentar reservas e a europeia, na qual a emergência
de novas nuances era imediata e cristalina.
Nos outros dois
protagonistas da peça (tudo o resto são papéis menores sem qualquer influência
no desenvolvimento da trama que nos tem tramado), Passos e Gaspar, há
comportamentos diferenciados. Gaspar, fiel ao guião inicial, permanece agarrado
ao seu papel de bom funcionário chegado de Frankfurt, até que alguém lhe diga
chega e o devolvam à origem. Passos dá sinais de querer (?) mudar de guião,
sobretudo porque começa a perceber (?) que a incompressibilidade da despesa é
algo que as suas convicções pré-eleitorais e sem experiência de governação
estariam longe de antecipar. E lança nesse sentido a ideia da refundação do
acordo, que não é mais do que um projeto de refundação do Estado, procurando
para isso sensibilizar o PS.
Há aqui que distinguir
com clareza duas coisas. Uma consiste na discussão do tema em abstrato, ou
seja, independentemente da experiência e prática de quem o propõe. Outra,
completamente distinta, consiste em discuti-la e projetá-la no tempo e situações
concretas da sociedade portuguesa.
No primeiro plano,
penso que mais tarde ou mais cedo não escaparemos a esse debate. Para isso
propus em posts anteriores o referencial do peso e do papel do Estado. A formulação
não é minha. Estou bem acompanhado. Penso que foi Stiglitz o primeiro a formulá-lo
nestes termos a propósito das crises asiáticas dos fins dos anos 90.
No segundo plano, porém,
Passos Coelho não tem moral para o propor agora, pois a sua abordagem ao
memorando da Troika é de quem quer utilizá-lo como veículo oculto de passagem
de um projeto de desmantelamento do Estado e do serviço público sem escrutínio
político democrático. Como tenho dito, esta gente não é de confiança, o que não
significa que parte dos que os antecederam o fossem. Quem propõe nos termos que
o fez a subida da TSU, quem propõe experimentalismo social e recua no dia
seguinte sabe-se lá por que razão, quem usa e despreza instrumentalmente a
concertação social não tem condições para propor à oposição no arco da governação
a refundação do Estado e do acordo. Não é que o tema não seja vital. Há domínios
em que o papel do Estado terá de significar peso desse mesmo Estado. Mas há
outros em que um papel mais consistente e determinado a prazo pode significar
até um menor peso. O problema está na credibilidade de quem o propõe. Mas já
agora tal refundação é indissociável de um pacto em torno de políticas de
crescimento.
O PS, certamente reforçado
por um coro tão alargado de opiniões em torno da necessidade de conjugar a
abordagem com a questão europeia, dará por certo o devido troco a este golpe de
rins de última circunstância, a este apelo de quem se vê forçado a contradizer
toda a rábula do aluno disciplinado. Nas condições em que estamos, é no plano
do escrutínio político democrático que o debate tem de ser necessariamente
feito. Só nesse plano Passos Coelho (se subsistir) terá moral para apresentar então,
preto no branco, o seu projeto (?) de minimização do peso e do papel do Estado
e pugnar, assim o entenda, por que seja sufragado eleitoralmente.
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