domingo, 14 de outubro de 2012

VPV E A GERAÇÃO DE SAMPAIO



A minha relação com as crónicas de Vasco Pulido Valente (VPV) e trata-se sobretudo da sua prosa, pois em matéria de discurso oral a sua não fluência contradiz tudo o que sai da sua pena, é muito contraditória. Abomino o seu pedantismo, os seus laivos de arrogância intelectual e sobretudo o fel destilado por alguns dos seus escritos. Mas reconheço-me profundamente no seu rigor histórico. “Glória”, escrito em torno da biografia de J.C. Vieira de Castro, por exemplo, foi uma obra que devorei deleitado. E as suas crónicas no Público, se as perdêssemos, constituiriam uma perda irreversível para a compreensão dos tempos da nossa pequenez. É nestes momentos cruciais que atravessamos que a solidez do conhecimento da História nos deve interpelar permanentemente. É sob essa ideia de me deixar interpelar permanentemente pela solidez da cultura histórica de VPV que tento (nem sempre com êxito) passar por cima do pedantismo elitista, da arrogância e da amargura biliar destilada em muitas das suas crónicas. Imagino que parte da amargura biliar terá alguma relação com algumas das mulheres que terão passado pela vida do homem e isso basta para lhe conceder algum desconto.
Ora, a crónica de hoje no Público tem que se lhe diga, pois gira em torno do primeiro volume da volumosa biografia de Jorge Sampaio, escrita por José Pedro Castanheira, que ainda não li nem comprei. Reconheço que tenho algum conflito de interesses com este tema, pois tenho um forte apreço pela maneira como o Ex-Presidente faz e fez política, nunca perdendo o seu rumo de homem comum, culto, de espírito sempre aberto ao debate de uma tertúlia de um grupo de amigos.
Mas a crónica de VPV não está focada na personalidade de Jorge Sampaio, embora alguma alma mais maldizente possa a encarar como alfinetada neste último.
A crónica gira em torno do grupo (que VPV até quantifica como uma trintena) de personalidades que ladeou Jorge Sampaio na sua ascensão política, classificados como de ex-GIS ou ex-MES.
Para a minha geração que sempre viveu toda esta trama como espectador distante, ou seja, com a distância infinita que representa viver estas coisas com alguma independência e a partir do Porto, a referida geração dos ex que orbitou em torno de Jorge Sampaio sempre exerceu algum fascínio. Não sendo frequentador do restaurante do Hotel Flórida, do Monte Carlo no Saldanha, do Vavá na Avenida de Roma ou do Procópio e de outros ícones dessa esquerda algo diletante, nas raras vezes em que em idas esporádicas a Lisboa tive a oportunidade de frequentar de raspão tais “instituições”, sempre me apercebi de quão diferente é o estatuto de visitante, ainda que algo fascinado, do de frequentador assíduo e cúmplice de tais lugares.
O fel de VPV é desta vez destilado sobre este grupo. E que fel. VPV contrapõe à interpretação de Jorge Sampaio, que invoca a imaturidade de uma geração para talvez bondosamente justificar a sucessão de apostas inconsequentes, uma visão nada bondosa de importadores acríticos vindas de França ou de Itália. Creio que alguém se encarregará, no tempo certo, de fazer a história contemporânea desta esquerda reformista, sempre acossada pelos vultos da social-democracia emergente em Portugal e pela pressão do Partido Comunista e extrema-esquerda mais ou menos folclórica. Talvez essa história ajude a compreender melhor o papel desta geração, produzindo uma interpretação menos venenosa do que a de VPV, em meu proveito diga-se, porque de facto não é saudável reconhecer numa geração que exerceu algum fascínio a vacuidade que VPV lhe atribuiu. Aturdido, mas não convencido.
Mas não queria deixar de partilhar com os leitores que teimam em seguir este blogue uma história verídica que me foi transmitida por um grande Amigo a quem devo algo da bússola política que tem acompanhado toda a minha formação cívica. Não vou citar nomes, pour cause. O intimismo da perspetiva sobre o Coura e sobre o Minho convida a essa introspeção pelo passado.
Em plena dinâmica associativa suscitada pelo 25 de Abril, neste caso no domínio da política habitacional, com associações de moradores e SAAL ao rubro, esse meu amigo integrou uma comitiva que se deslocou a Lisboa para uma reunião com o Ministro ou Secretário de Estado da pasta, a minha memória não consegue afinar qual dos estatutos de tutela está em causa nesta história. Mas não interessa. Interessa que a personalidade em causa era amiga e companheira de outras lutas e que pertencia ao tal grupo de ex-30 qualquer coisa, objeto do fel de VPV. Pelos mesmos motivos compreensíveis não cito nomes. Imagina-se, reproduzindo o contexto da época, o fervor quase revolucionário da delegação e algum sentimento de regozijo por do lado de lá estar alguém próximo, sinal dos tempos de então. Em registo intimista, o meu citado Amigo confessa que o seu fervor militante e revolucionário e da própria delegação esmoreceram quando, no mais completo e aleatório dos acasos, deram de olho com o fino e requintado sapato do anfitrião, de gosto e preço insuperáveis. A dissonância do contexto teria arrefecido o mais ardente fervor revolucionário dos tempos. Eis um elemento subtil, circunstancial talvez, que ajuda a caracterizar a geração dos “ex-30” que tenho de confessar exerceu algum fascínio sobre a minha acumulação de conhecimento, não pelos sapatos, entenda-se.

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