A minha relação com as crónicas de Vasco Pulido Valente
(VPV) e trata-se sobretudo da sua prosa, pois em matéria de discurso oral a sua
não fluência contradiz tudo o que sai da sua pena, é muito contraditória.
Abomino o seu pedantismo, os seus laivos de arrogância intelectual e sobretudo
o fel destilado por alguns dos seus escritos. Mas reconheço-me profundamente no
seu rigor histórico. “Glória”, escrito em torno da biografia de J.C. Vieira de
Castro, por exemplo, foi uma obra que devorei deleitado. E as suas crónicas no
Público, se as perdêssemos, constituiriam uma perda irreversível para a
compreensão dos tempos da nossa pequenez. É nestes momentos cruciais que
atravessamos que a solidez do conhecimento da História nos deve interpelar
permanentemente. É sob essa ideia de me deixar interpelar permanentemente pela
solidez da cultura histórica de VPV que tento (nem sempre com êxito) passar por
cima do pedantismo elitista, da arrogância e da amargura biliar destilada em
muitas das suas crónicas. Imagino que parte da amargura biliar terá alguma
relação com algumas das mulheres que terão passado pela vida do homem e isso
basta para lhe conceder algum desconto.
Ora, a crónica de hoje no Público tem que se lhe diga,
pois gira em torno do primeiro volume da volumosa biografia de Jorge Sampaio,
escrita por José Pedro Castanheira, que ainda não li nem comprei. Reconheço que
tenho algum conflito de interesses com este tema, pois tenho um forte apreço
pela maneira como o Ex-Presidente faz e fez política, nunca perdendo o seu rumo
de homem comum, culto, de espírito sempre aberto ao debate de uma tertúlia de
um grupo de amigos.
Mas a crónica de VPV não está focada na personalidade de
Jorge Sampaio, embora alguma alma mais maldizente possa a encarar como
alfinetada neste último.
A crónica gira em torno do grupo (que VPV até quantifica
como uma trintena) de personalidades que ladeou Jorge Sampaio na sua ascensão
política, classificados como de ex-GIS ou ex-MES.
Para a minha geração que sempre viveu toda esta trama
como espectador distante, ou seja, com a distância infinita que representa
viver estas coisas com alguma independência e a partir do Porto, a referida
geração dos ex que orbitou em torno de Jorge Sampaio sempre exerceu algum fascínio.
Não sendo frequentador do restaurante do Hotel Flórida, do Monte Carlo no Saldanha,
do Vavá na Avenida de Roma ou do Procópio e de outros ícones dessa esquerda
algo diletante, nas raras vezes em que em idas esporádicas a Lisboa tive a
oportunidade de frequentar de raspão tais “instituições”, sempre me apercebi de
quão diferente é o estatuto de visitante, ainda que algo fascinado, do de
frequentador assíduo e cúmplice de tais lugares.
O fel de VPV é desta vez destilado sobre este grupo. E
que fel. VPV contrapõe à interpretação de Jorge Sampaio, que invoca a imaturidade
de uma geração para talvez bondosamente justificar a sucessão de apostas
inconsequentes, uma visão nada bondosa de importadores acríticos vindas de
França ou de Itália. Creio que alguém se encarregará, no tempo certo, de fazer
a história contemporânea desta esquerda reformista, sempre acossada pelos
vultos da social-democracia emergente em Portugal e pela pressão do Partido
Comunista e extrema-esquerda mais ou menos folclórica. Talvez essa história
ajude a compreender melhor o papel desta geração, produzindo uma interpretação
menos venenosa do que a de VPV, em meu proveito diga-se, porque de facto não é
saudável reconhecer numa geração que exerceu algum fascínio a vacuidade que VPV
lhe atribuiu. Aturdido, mas não convencido.
Mas não queria deixar de partilhar
com os leitores que teimam em seguir este blogue uma história verídica que me
foi transmitida por um grande Amigo a quem devo algo da bússola política que
tem acompanhado toda a minha formação cívica. Não vou citar nomes, pour cause. O intimismo da perspetiva
sobre o Coura e sobre o Minho convida a essa introspeção pelo passado.
Em plena dinâmica associativa
suscitada pelo 25 de Abril, neste caso no domínio da política habitacional, com
associações de moradores e SAAL ao rubro, esse meu amigo integrou uma comitiva
que se deslocou a Lisboa para uma reunião com o Ministro ou Secretário de
Estado da pasta, a minha memória não consegue afinar qual dos estatutos de
tutela está em causa nesta história. Mas não interessa. Interessa que a
personalidade em causa era amiga e companheira de outras lutas e que pertencia
ao tal grupo de ex-30 qualquer coisa, objeto do fel de VPV. Pelos mesmos
motivos compreensíveis não cito nomes. Imagina-se, reproduzindo o contexto da época,
o fervor quase revolucionário da delegação e algum sentimento de regozijo por
do lado de lá estar alguém próximo, sinal dos tempos de então. Em registo
intimista, o meu citado Amigo confessa que o seu fervor militante e revolucionário
e da própria delegação esmoreceram quando, no mais completo e aleatório dos
acasos, deram de olho com o fino e requintado sapato do anfitrião, de gosto e
preço insuperáveis. A dissonância do contexto teria arrefecido o mais ardente
fervor revolucionário dos tempos. Eis um elemento subtil, circunstancial
talvez, que ajuda a caracterizar a geração dos “ex-30” que tenho de confessar
exerceu algum fascínio sobre a minha acumulação de conhecimento, não pelos
sapatos, entenda-se.
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