sexta-feira, 12 de outubro de 2012

UM LIO COLOSSAL



Os meus amigos galegos usam frequentemente uma expressão que faz também parte do vocabulário português, mas que não é tão comum como isso, pelo menos na nossa comunicação mais coloquial. A expressão é um lio, que utilizam regularmente para descrever situações de grande embrulhada, verdadeiros novelos, produtos de alguém desajeitado que quis mexer e fez droga, ou seja, gerou algo difícil de deslindar.
A aceleração do tempo político em que estamos mergulhados gerou uma situação para a qual não tenho melhor expressão do que um verdadeiro lio.
As contradições avolumam-se e, bem pior do que isso, começam a potenciar-se mutuamente. Assim, por exemplo, quando a atual maioria procura invocar (e desajeitadamente, diga-se, e já em golpe de rins de último recurso) a herança maléfica que herdou, já não há um português minimamente atento que a acompanhe nessa comunicação de dificuldades. É verdadeiramente espantoso como um capital de reserva justificativa é delapidado em tão curto espaço de tempo, mesmo que possamos dizer que todo o contexto de derrube do PEC IV haveria sempre de constituir um elemento de amortização acelerada desse mesmo capital.
E o plano inclinado que rapidamente se formou na frente governativa ainda mais acelerou essa delapidação do efeito novidade da nova maioria. Chame-se-lhe o que se entender, impreparação, arrogância, incompetência, erro de casting e de modelo organizacional, fidelidade canina a um corpo doutrinário da macroeconomia e todo o rol de impropérios que têm brotado não da esquerda radical mas de opiniões e testemunhos de gente no espaço de governação. Tudo isso joga a favor de um processo de desautorização claro e inequívoco da governação.
O assalto fiscal que vai ficar associado ao orçamento para 2013 simboliza bem esse plano inclinado e uma opção desta natureza cheira a desfibrilador de último recurso, do tipo “se pegar pega, senão é uma boa forma de nos vermos livres de tudo isto”. E, sem falar nos comentadores papagaio, ou seja, os que têm afirmado a tese A e o seu contrário em tão curto espaço de tempo, mas considerando vozes que continuam a ter algum peso, a perda de autoridade técnica, política e moral da atual governação é tão clamorosa, que se sente o vazio de poder.
Para ajudar à festa, a já aqui por várias vezes repetida auto crítica do FMI, que permitiu concluir que afinal economistas como Olivier Blanchard ainda têm alguma pinga de vergonha e de coerência, vem mostrar bem às claras que só segundas e obscuras intenções alemãs poderão justificar no futuro próximo a ausência de uma qualquer e possível inflexão na condução da crise das dívidas soberanas.
As ondas de choque da autocrítica do FMI estão ainda longe de produzir efeitos nas autoridades europeias. Citando Bradford DeLong, o insípido Olli Rehn terá dito, de retorno a Bruxelas depois de ouvir em público a senhora Lagarde e os seus economistas a exporem a sua autocrítica, que leria com atenção o World Economic Outlook do FMI. Mas lá foi dizendo que o “famigerado efeito-confiança” da consolidação fiscal não pode ser esquecido, invocando para isso o caso da Bélgica. É impressionante o saltitar de experiência paradigmática a que temos assistido nos últimos tempos. Mas fazer de uma economia tão singular e aberta como a Bélgica é o ponto de referência para toda a zona euro já é pura desonestidade intelectual.
O plano inclinado dos resgates vai demonstrar para mal dos nossos bolsos que a questão não é apenas um erro de multiplicadores. É mesmo o risco das consolidações fiscais se tornarem autodestrutivas, aplicando às economias do sul a situação típica em que o robot criado foge ao controlo do seu criador, que estará em causa nos próximos passos.
E, ironia das ironias, quando o contexto da Troika está cada vez menos homogéneo, com fissuras emergentes na sequência das ondas de choque da autocrítica do FMI, temos um governo desautorizado na frente interna e incapaz de esgrimir externamente nesse novo contexto uma nova filosofia para a aplicação do resgate. A imagem de subserviência de Vítor Gaspar perante o ministro das Finanças alemão, que bem pode ter sido um simples gesto de cortesia perante um homem em cadeira de rodas, dificilmente será esquecida.
O lio está cada vez mais enrodilhado. O filme do governo de personalidades independentes ou afastadas nos últimos tempos de lides partidárias, capazes de moralizar a ação governativa e simultaneamente ser credível no plano externo, começa a ser planeado. Será que neste contexto de plano inclinado a maioria resiste até ao fim da aplicação do memorando, abrindo-se depois uma consulta eleitoral? Terá o memorando fim?

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