Os meus amigos galegos usam frequentemente uma expressão
que faz também parte do vocabulário português, mas que não é tão comum como
isso, pelo menos na nossa comunicação mais coloquial. A expressão é um lio, que
utilizam regularmente para descrever situações de grande embrulhada,
verdadeiros novelos, produtos de alguém desajeitado que quis mexer e fez droga,
ou seja, gerou algo difícil de deslindar.
A aceleração do tempo político em que estamos mergulhados
gerou uma situação para a qual não tenho melhor expressão do que um verdadeiro
lio.
As contradições avolumam-se e, bem pior do que isso, começam
a potenciar-se mutuamente. Assim, por exemplo, quando a atual maioria procura invocar
(e desajeitadamente, diga-se, e já em golpe de rins de último recurso) a
herança maléfica que herdou, já não há um português minimamente atento que a
acompanhe nessa comunicação de dificuldades. É verdadeiramente espantoso como
um capital de reserva justificativa é delapidado em tão curto espaço de tempo,
mesmo que possamos dizer que todo o contexto de derrube do PEC IV haveria
sempre de constituir um elemento de amortização acelerada desse mesmo capital.
E o plano inclinado que rapidamente se formou na frente
governativa ainda mais acelerou essa delapidação do efeito novidade da nova maioria.
Chame-se-lhe o que se entender, impreparação, arrogância, incompetência, erro
de casting e de modelo organizacional,
fidelidade canina a um corpo doutrinário da macroeconomia e todo o rol de
impropérios que têm brotado não da esquerda radical mas de opiniões e
testemunhos de gente no espaço de governação. Tudo isso joga a favor de um
processo de desautorização claro e inequívoco da governação.
O assalto fiscal que vai ficar associado ao orçamento
para 2013 simboliza bem esse plano inclinado e uma opção desta natureza cheira
a desfibrilador de último recurso, do tipo “se pegar pega, senão é uma boa
forma de nos vermos livres de tudo isto”. E, sem falar nos comentadores
papagaio, ou seja, os que têm afirmado a tese A e o seu contrário em tão curto
espaço de tempo, mas considerando vozes que continuam a ter algum peso, a perda
de autoridade técnica, política e moral da atual governação é tão clamorosa,
que se sente o vazio de poder.
Para ajudar à festa, a já aqui por várias vezes repetida
auto crítica do FMI, que permitiu concluir que afinal economistas como Olivier
Blanchard ainda têm alguma pinga de vergonha e de coerência, vem mostrar bem às
claras que só segundas e obscuras intenções alemãs poderão justificar no futuro
próximo a ausência de uma qualquer e possível inflexão na condução da crise das
dívidas soberanas.
As ondas de choque da autocrítica do FMI estão ainda
longe de produzir efeitos nas autoridades europeias. Citando Bradford DeLong, o
insípido Olli Rehn terá dito, de retorno a Bruxelas depois de ouvir em público
a senhora Lagarde e os seus economistas a exporem a sua autocrítica, que leria
com atenção o World Economic Outlook do
FMI. Mas lá foi dizendo que o “famigerado efeito-confiança” da consolidação
fiscal não pode ser esquecido, invocando para isso o caso da Bélgica. É
impressionante o saltitar de experiência paradigmática a que temos assistido
nos últimos tempos. Mas fazer de uma economia tão singular e aberta como a Bélgica
é o ponto de referência para toda a zona euro já é pura desonestidade
intelectual.
O plano inclinado dos resgates vai demonstrar para mal
dos nossos bolsos que a questão não é apenas um erro de multiplicadores. É mesmo
o risco das consolidações fiscais se tornarem autodestrutivas, aplicando às economias
do sul a situação típica em que o robot criado foge ao controlo do seu criador,
que estará em causa nos próximos passos.
E, ironia das ironias, quando o contexto da Troika está
cada vez menos homogéneo, com fissuras emergentes na sequência das ondas de
choque da autocrítica do FMI, temos um governo desautorizado na frente interna
e incapaz de esgrimir externamente nesse novo contexto uma nova filosofia para
a aplicação do resgate. A imagem de subserviência de Vítor Gaspar perante o
ministro das Finanças alemão, que bem pode ter sido um simples gesto de
cortesia perante um homem em cadeira de rodas, dificilmente será esquecida.
O lio está cada vez mais enrodilhado. O filme do governo
de personalidades independentes ou afastadas nos últimos tempos de lides partidárias,
capazes de moralizar a ação governativa e simultaneamente ser credível no plano
externo, começa a ser planeado. Será que neste contexto de plano inclinado a
maioria resiste até ao fim da aplicação do memorando, abrindo-se depois uma
consulta eleitoral? Terá o memorando fim?
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