domingo, 2 de dezembro de 2012

PALAVRAS SÁBIAS E OUTRAS NEM TANTO COMO ISSO

(La Cantante 1926, Juan Gris, Coleção Fundación Telefónica)


O fim de semana traz sempre consigo um intenso cacarejar escrito e falante da comunicação social, sendo cada vez mais difícil reter alguma ideia relevante. O consumismo vulgarizador das ideias ataca em massa e a prática pessoal de passar os olhos ao de leve pelos títulos é suficiente para se compreender de relance a vacuidade do que se vai escrevendo por aí. De quando em vez, o deslocamento da atenção para alguma imprensa internacional consegue furar essa vacuidade. Por exemplo, o suplemento do El País dos sábados, o Babelia, é um excelente reencontro com algum conteúdo. O de ontem, que recomendo vivamente, tem vários motivos de interesse. Em primeiro lugar, um artigo crucial sobre o novo vanguardista do flamengo (Israel Galván), sobre o qual vale a pena dar uma olhada a alguns vídeos no You Tube (vejam A Curva, por exemplo), um raro exemplo de como pode existir uma desconstrução genial do mais tradicional. O seu espetáculo no Teatro Real sobre o Holocausto cigano deve ser de arrepiar. Depois, dois artigos de dois grandes prosadores espanhóis: Antonio Muñoz Molina (sobre o cubista espanhol Juan Gris) e de Enrique Vila-Matas em torno da sua vinda ao Festival de Cinema do Estoril a convite de Paulo Branco e do Estado das Coisas de Wim Wenders que ele considera ser o filme da sua geração.
Retirando esta incursão pelo Babelia, palavras sábias podem ser encontradas na entrevista de Niels Westergard-Nielsen da Universidade dinamarquesa de Aarhus ao Público de sábado. A sabedoria está na forma como destaca a especificidade do modelo dinamarquês de flexisegurança. Ou seja, uma extrema flexibilidade do mercado de trabalho, com vantagens inequívocas para os mais jovens, mas acompanhada por proteção social efetiva no desemprego e sobretudo um sistema de fiscalização e vigilância, capaz de controlar a não adulteração dessa proteção e apostando sempre numa avaliação custo-benefício das políticas de ativação de desempregados, sem dúvida bastante caras. Quer isto significar que o grau de flexibilização laboral numa sociedade que preze a coesão social não pode ser conduzida à revelia da proteção social no desemprego ou em conformidade com a sua desmontagem. Palavras cruciais para iluminar o debate sobre a reforma estrutural do mercado de trabalho em Portugal.
Palavras não tão sábias como isso encontramo-las no manifesto encabeçado por Mário Soares de apelo à mudança de políticas por parte de Passos Coelho ou em alternativa à sua demissão. Com a contundência que é sua marca, Vasco Pulido Valente já desancou hoje no Público o suficiente sobre o que subjaz a esse manifesto. Irei talvez mais longe, correndo o risco de chocar alguns dos meus conhecidos. Mas uma certa opinião política em Portugal que continua a estruturar o seu pensamento em função do que o 25 de Abril de 1974 representou face ao regime ditatorial que nos conduziu ao isolamento e atavismo que presidiu à sociedade portuguesa até então representa, em meu entender e por mais controversa que o possa ser, um obstáculo à modernidade do pensamento político em Portugal. Sim, um obstáculo à modernidade. Então porquê? Porque invocar alternativas de política (necessárias para suster o empobrecimento cumulativo em que nos poderemos enredar) à governação atual fazendo-o apenas com base numa espécie de capitalização dos valores da geração de Abril e sem mediação com a intervenção política de hoje, com as forças políticas que temos ou sem gerar alternativas às mesmas, é pura retórica revivalista, sem qualquer lastro de influência na opinião pública e na cultura democrática. É cruel, sobretudo quando Mário Soares encabeça esse manifesto. É, de facto. Mas o que temos hoje não é o que determinou o 25 de Abril. Temos um quadro democrático, por mais críticas e reservas que possamos colocar à sua qualidade. É nesse quadro e no da valorização de uma sociedade civil mais interveniente que deveremos refletir. Por muito que incomode e frustre os que viram na mudança de 74 o caminho para uma modernidade inclusiva.

Sem comentários:

Enviar um comentário