sábado, 11 de outubro de 2014

A PT E OS FANTASMAS DE UM PEQUENO PAÍS



Vamos ter um fim-de-semana marcado inequivocamente pelos comentários em torno da eminente desagregação da PT, algo de anunciado na sequência de uma alucinada sequência de decisões, aproveitamentos, degradação das condições de “corporate governance” e da recorrente reincidência dos mitos de um pequeno país. Choram-se lágrimas de crocodilo, o ego nacional está em baixa, uns figurões sacaram quanto quiseram e, como sempre, é apenas a componente CDS do governo (neste caso Pires de Lima) que chama as coisas pelos seus nomes, mas não passa disso, ou seja, não tem consequências na governação.
Um pequeno país não está condenado a prescindir de ambição e não serei eu a contrariar essa possibilidade. Alguém pensou que Portugal poderia ter uma empresa global nas telecomunicações e na gama de serviços associados e começou a fazer por isso, inicialmente (não momentaneamente mas com alguma duração de tempo) com apoio determinante do Estado e dos sucessivos governos. Recordo-me que, designadamente com apoio dos Fundos Estruturais de sucessivos períodos de programação, a PT foi sendo apoiada na sua dimensão tecnológica, em grande medida potenciado pelos recursos humanos e know how que foi sendo possível acumular na empresa.
Nunca ninguém de boa-fé e distanciado das querelas que essa estratégia inevitavelmente suscitou analisou com rigor quais foram os custos de oportunidade da operação de querer fazer emergir um campeão nacional com estatuto de empresa global, gerados pelos efeitos de inibição ou mesmo de penalização de grupos nacionais alternativos e concorrentes no domínio das telecomunicações. É difícil encontrar essa gente capacitada e distanciada para o fazer. A transformação da PT em pretensa empresa global deu origem a um séquito imenso e diversificado de beneficiários diretos e potenciais e por isso faltou a muito boa gente a clarividência para analisar friamente o que estava em andamento.
A PT ilustra bem o que se sabe acerca dos resultados de processos desta natureza, comecem eles por ser públicos, assim permaneçam ou sejam depois privatizados, ou inicialmente privados com base num processo de discriminação positiva de algum grupo empresarial. No primeiro caso, em ambas as situações o processo de construção de uma empresa global não está isento de derivas ou de captura do interesse público. Na situação comparativa que interessa reter, a do projeto público com posterior privatização, o momento chave é o da estabilização do corpo acionista privado. Em Portugal, optou-se pela privatização total, o que reforça a delicadeza desse momento-chave. Depois de uma poderosa magnitude de investimento público associado ao processo (e tendo em conta o custo de oportunidade de colocar os ovos todos num único cesto), a privatização não permite regra geral manter vivo o desígnio nacional de construção de uma empresa global com o nome do país. No caso da PT, a decisão de construir a empresa global a partir da aposta inicial no mercado brasileiro e, posteriormente, o modo como os acionistas da PT responderam ao ultimatum da Telefónica espanhola anunciavam o pior. A posterior parceria com a Oi está longe de constituir uma parceria estratégica e está por demonstrar que a lusofonia constitua a rampa de lançamento certa para uma empresa que aspira a ser global. Cada um à sua maneira o Brasil e Angola estão longe de partilhar a abordagem mais afetiva do que estratégica que os portugueses dedicam a esse espaço. A pequena dimensão de Portugal face a esses dois parceiros tem sido fator permanente de sobrevalorização do interesse económico da lusofonia, sobretudo quando Portugal não associa a essa pequena dimensão uma desproporcionada intensidade de conhecimento, que poderia compensar tais diferenças.
A PT transformou-se mais num centro de captação de rendas sob a forma de chorudos dividendos do que propriamente num exemplo de construção paulatina de uma empresa global que exigiria da parte dos seus acionistas uma outra capacidade de investimento. O que significa que o valor inicialmente criado por via determinantemente pública foi progressivamente esquartejado por acionistas ávidos de rendimento. Por cada exemplo desta natureza e magnitude que soçobra, mais se reforçam as dificuldades de reorientação do tecido empresarial por via pública. Hoje, tem cada vez mais sentido equacionar os custos de oportunidade de se terem colocado os ovos num único cesto (a PT). Quantos projetos e dinâmicas empresariais foram destruídos ou impedidos de emergir por força dos apoios à PT? Que significado teve em concreto a opção governamental (nos tempos de Sócrates) de impossibilitar a OPA da SONAE?
Dirão alguns, como Henrique Monteiro no Expresso, que só em Portugal se acreditaria na fábula de uma pequena economia aspirando a ter uma empresa global. José Félix Ribeiro dirá, e se calhar lucidamente, que Portugal poderá quando muito aspirar a ser plataforma de empresas globais externas, desde que se consiga organizar para tal e dotar-se das competências certas. Neste caso, o lavar dos cestos pode ter ainda uma dimensão estratégica, não sendo indiferente quem adquira a PT tal como se apresenta. Mas, extrapolando a partir das privatizações já concretizadas, a perspetiva do atual governo roça a mais elementar indigência estratégica.

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