domingo, 19 de outubro de 2014

MISCELÂNEA DE FIGURÕES



A imprensa do fim-de-semana constitui sempre uma oportunidade para clarificar as tendências de opinião na sociedade portuguesa acerca dos rumos do nosso presente e futuro, neste caso particular com foco no orçamento geral do estado apresentado na Assembleia da República. A dinâmica de opinião e de notícias dos últimos três a quatro dias não foge a essa regra e as regularidades emergem de modo cristalino.
É cada vez mais notório que a sociedade portuguesa tende a dividir-se em três grandes grupos aos quais é difícil senão impossível fazer corresponder uma dimensão sociológica clara.
O primeiro grupo é constituído pelo que designo de figurões direta ou indiretamente relacionados com os interesses da captura do Estado, captura que caracteriza marcadamente a débil expressão do capitalismo em Portugal, sobretudo no contexto da sua recomposição após a revolução de abril de 1974 e concomitante destruição ou pelo menos decomposição dos principais grupos empresariais. Esses figurões tanto estiveram presentes na captura de interesses que a tentativa política de fazer da PT uma empresa global gerou, como o estão agora na sua venda provavelmente ao desbarato a um grupo (ou coisa que o valha) francês de quinta categoria. Estarão também entre os que se comovem com a pretensa inocência dos Espírito Santo ou que se preparam para mudar de agulhas face a uma possível alternância democrática. O que preocupa neste grupo é a crescente probabilidade de vermos parte da comunicação social tolhida pela sua influência, incapaz de raciocinar com a devida dimensão das coisas. A imagem talvez viral do tijolo e do berlinde lançada por Pacheco Pereira no último Quadratura do Círculo representa esse alerta para os perigos do não dimensionamento dos problemas, admitindo que a novidade se compara ao peso da realidade. E quem é que, senão a comunicação social, reproduz o não dimensionamento rigoroso das coisas, dando atenção ao que é pontualmente novidade e remetendo para o esquecimento as agruras da realidade?
O segundo grupo é a mancha imensa dos que Vasco Pulido Valente (numa das suas raras crónicas sempre rigorosas mas não azedas) designava no sábado como sendo as “pessoas que percebiam ainda que, para lá do sofrimento pessoal, a “depressão” lhes roubava o que nunca lhes poderia voltar a dar: o tempo perdido. Cinco, seis, sete anos da vida que tinham imaginado para si.” O futuro da democracia portuguesa estará nos próximos tempos irremediavelmente associado ao comportamento deste grupo fortemente heterogéneo (embora com forte peso da classe média), que tanto poderá evoluir para uma anomia assumida e crescente desinteresse e desconfiança para com os mecanismos da intervenção democrática e os seus atores mais representativos como para uma intervenção crítica e regeneradora das principais forças políticas, Não sabemos hoje ainda que intensidade de efeitos perversos que o pós 2011 irá gerar na sociedade portuguesa em termos de anomia social e desconfiança neste grupo fortemente representativo.
O terceiro grupo é constituído por aqueles cuja capacidade de iniciativa, entusiasmo e motivação não passa pelo círculo mais ou menos alargado da captura dos interesses do Estado, onde se destacam empresários de PME que estão a fazer a sua longa conquista dos mercados externos, animadores e empreendedores sociais que têm contribuído para manter níveis aceitáveis de capital social, jornalistas e intelectuais que não vendem a alma e a razão aos “marketers” da ilusão social e da propaganda, agentes culturais que ajudam a manter níveis de capital cultural nos territórios, professores que não desistem perante a irracionalidade à solta da sua tutela, profissionais do sistema nacional de saúde que o ajudam a manter apesar da pressão das contas públicas.
Tenho para mim que uma alternativa democrática de futuro para Portugal passará muito pelo estabelecimento de laços entre o segundo e o terceiro grupo, aos quais algum projeto político terá de dar expressão. No fundo, uma estratégia simples que consistirá em combater ao máximo a anomia do segundo e a potenciar a generosidade, profissionalismo e empenho do terceiro.

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