Recorrentemente e ao ritmo de cada novo orçamento
de Estado, o tema deste post emerge
de modo cristalino para quem honestamente se coloca a questão “que alternativa
poderia um projeto de governação viável de centro-esquerda apresentar?”. O
ritual repetiu-se invariavelmente esta semana com o desconjuntado e
politicamente criativo novo orçamento da maioria, o qual tenta a pirueta do
três em um: convencer a populaça e os mercados de que são responsáveis, piscar
o olho eleitoralista a alguns setores da população e tentar comprometer a
margem de manobra de uma possível alternativa à maioria atual.
Ferro Rodrigues, mesmo antes do pronunciamento
formal do PS em relação ao OGE, abriu as hostilidades dizendo mais ou menos o
seguinte: não é possível em simultâneo defender estado social e sistemas
públicos relevantes como os da saúde e da educação e apontar para uma descida
significativa dos impostos.
A questão é central e provavelmente será debatida
hoje em encontro de economistas convocado por Ferro Rodrigues e António Costa,
no qual impedimentos profissionais determinaram a minha não participação.
Avancemos com algumas reflexões preliminares
sobre o tema.
A descida dos impostos e da carga fiscal
constitui uma grande bandeira dos governos da direita liberal, com larga
expressão de representatividade entre os republicanos made in USA e os eternamente conservadores do Reino Unido. O
racional da aposta destas forças políticas oscila entre duas versões. A versão
mais pérfida é estritamente ideológica: trata-se de favorecer quem paga mais
impostos e nesses países quem os paga mais são as classes mais abastadas. A
versão mais bondosa centra-se sobretudo nos efeitos eventualmente positivos que
essa descida, sobretudo do IRC, tenderá a exercer sobre o relançamento do
investimento privado. Esta versão bondosa pode estender-se às descidas do IRS e
remete para os incentivos ao trabalho e à participação nesse mercado. O
racional aqui implícito aponta para a subalternização dos imperativos da
despesa pública. O nível da despesa pública será determinado pela massa global
de impostos que a desejada diminuição fiscal consiga arrecadar. A história está
cheia de evidências de situações de défices públicos gigantescos gerados por
esse racional. Descem-se os impostos, as despesas públicas emergem mais
incompressíveis do que o discurso ideológico aspira que sejam e o buraco
orçamental é incontornável. O modo como o governo de Bush delapidou os
excedentes orçamentais gerados pela governação Clinton ilustra frequentemente
as derivas deste racional.
Mas não pode deixar de reconhecer-se que este
racional da direita liberal parte com uma enorme popularidade à cabeça, diria
espontânea da parte das empresas e das famílias. As suas interrogações
(incompressibilidade e não previsibilidade de despesa pública e incerteza
quanto ao efeito da descida de impostos sobre o investimento privado) não se
impõem do mesmo modo ao eleitorado como a afirmação do seu racional central.
Esta recordatória é importante, pois coloca à
partida uma alternativa de centro-esquerda em pior situação de mensagem
eleitoral do que os seus adversários da direita liberal. É mais difícil fazer
passar a mensagem de que a incompressibilidade da despesa pública, sobretudo da
despesa social, limita a margem de manobra do aliviamento da carga fiscal. Na
minha interpretação, uma alternativa de centro-esquerda em termos fiscais
defronta-se essencialmente com três desafios:
- · Primeiro, é mais exigente em termos de equidade fiscal, ou seja a alternativa tem de modo transparente evidenciar que reparte equilibradamente o esforço fiscal que é solicitado à população sobre a qual se exerce a punção fiscal (o termo é horrível mas é frequentemente utilizado);
- · Segundo, é crucial demonstrar que os impostos são “accountable”, ou seja de que há uma relação legível para o cidadão contribuinte entre o esforço fiscal solicitado e a qualidade da despesa e dos serviços públicos que esse esforço tende a proporcionar e a garantir aos cidadãos;
- · Terceiro, é necessário gerir com perícia uma espécie de desafio colateral: como dinamizar o investimento privado e o crescimento económico em contexto de não descida significativa dos impostos.
Concentremos neste terceiro desafio, pois os dois
primeiros são mais intuitivos e não acrescentaria muito ao seu próprio
enunciado.
Uma alternativa de centro-esquerda não pode
ignorar que, numa economia como a portuguesa, quando se fala da relação entre
impostos e investimento privado, não é apenas de investimento privado interno
de que se fala. A economia portuguesa não pode ignorar a atração de
investimento direto estrangeiro, sobretudo de projetos que contribuam
inequivocamente para a mudança do perfil de especialização nacional, sobretudo
em termos de intensidade de incorporação nesse investimento de tecnologia e de
conhecimento. Ora, nesta matéria, para além de um efeito e imagem de país que é
necessário trabalhar, não podemos esquecer que não estamos sozinhos na UE e
harmonização fiscal é coisa que não existe e temos sempre as autoridades
europeias da concorrência à perna.
Mas não fiquemos por aqui. É necessário
compreender com elementos baseados na evidência em que medida a fiscalidade do
investimento pesa efetivamente sobre as suas decisões. E haverá por certo
outros determinantes que não tenham a mesma influência sobre a equação fiscal,
condicionando-a decisivamente, eventualmente até mais facilmente influenciáveis
pelas políticas públicas e sem o mesmo efeito indutor de despesa pública (ou de
menos receita pública).
Este desafio é colateral pois suscita uma questão
para a qual uma alternativa de centro-esquerda (obviamente catalizada pelo
Partido Socialista) tem de conceber uma resposta clara e inequívoca. Como
influenciar positivamente a dinâmica do investimento (e consequentemente do
crescimento económico)? Sem relançamento do investimento não haverá crescimento
que se veja e atenda-se por exemplo à evolução comparada no tempo do peso da
formação bruta de capital fixo no PIB na União Europeia e em Portugal para o
compreender.
A solução não poderá ser a do demissionismo incongruente de Passos Coelho que não se cansa de
reafirmar que isso não é com o governo mas com os empresários, nem a do Estado
compulsivamente empreendedor que tudo dinamiza investimento como o anacrónico
discurso do PCP não se cansa de repetir.
E não pode ignorar-se ainda que a existência de
“joias da coroa”, perfiladas como empresas globais e alavancas estruturantes de
todo um sistema de PME com desejavelmente maior potencial inovador, está neste
momento praticamente reduzida a cinzas. O velório antecipado em curso da PT
como empresa global (alguma vez foi alavanca estruturante?) ilustra essa
tragédia. Significa isto que estamos reduzidos aos sistemas de PME clusterizadas
em torno de alguns domínios de atividade e de certos territórios como base de
sustentação de uma nova dinâmica de investimento privado, aos quais se possa
juntar, não para destruir mas para animar, alguns investimentos estrangeiros
estruturantes que possam alavancar tais sistemas.
As relações da alternativa de governação de
centro-esquerda com esses sistemas de PME constituirão por isso o centro da
influência sobre o relançamento do investimento privado. Várias agendas poderão
emergir em torno deste desígnio central:
- Gerir estrategicamente e com inteligência o enorme potencial que o novo período de programação 2014-2020 traz de apoio a esses sistemas de PME e à sua articulação e desejável convivência com a inovação tecnológica (PO Regionais e PO Competitividade e Internacionalização);
- Corrigir estrategicamente a incapacidade deste governo de oferecer à política de clusters e de polos de competitividade (oriundos do período de programação anterior) um rumo consistente de inovação e internacionalização dos já referidos sistemas de PME;
- Tirar partido da presidência da Agência Nacional de Inovação (uma nomeação recente que constituirá na minha perspetiva uma das únicas nomeações de que esta maioria poderá orgulhar-se no futuro), alguém com uma capacidade rara em Portugal de estabelecer pontes entre a investigação científica e tecnológica e as empresas;
- Trabalhar os sistemas de formação e de qualificações em estreita articulação com cada um desses sistemas de PME;
- Territorializar políticas públicas dirigidas às empresas segundo essa visão do sistema produtivo nacional;
- Olhar para os serviços cada vez como setor transacionável e motores de atividades cruciais para uma presença mais ambiciosa das empresas portuguesas nas cadeias de valor globais.
Grande parte deste racional de intervenção não é
crítico do ponto de vista do impacto sobre a despesa pública e estou certo que
contribuirá para reduzir o peso da carga fiscal como fator penalizador do
investimento privado.
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