"Cosmópolis" é um romance de 2003 escrito pelo italo-americano Don DeLillo e agora por cá reeditado pela “Relógio D’Água”, um pouco à boleia de alguma agitação em torno da sua adaptação cinematográfica por David Cronenberg com produção de Paulo Branco e, sobretudo, da chamada a principal intérprete do adolescentemente idolatrado Robert Pattinson de "Twilight". Pois fiz sobre "Cosmópolis" uma miscelânea duvidosamente recomendável: comprei o livro, li a sua primeira parte, fui ver o filme e li finalmente o resto do livro – acabei este processo convencido da viabilidade de uma ligação quase perfeita entre literatura e cinema, mas não penso que este resultado decorra essencialmente daquela miscelânea. Com efeito, se assim se me tornou improcedente a tradicional questão de saber o que é melhor – o filme nem fica aquém nem vai para além do livro –, a harmoniosa coexistência de duas versões artísticas diferentes, e ambas excelentes, tem substrato próprio.
DeLillo é o dono inicial da obra, um
trabalho largamente premonitório sobre o inevitável
esgotamento para que caminhava o confiante modelo capitalista vindo dos anos 90.
Passa-se num
único dia de Abril de 2000 em que todas as ameaças convergem e tem por
protagonista um jovem de 28 anos que enriqueceu com os mercados financeiros
internacionais e decide ocupar a sua limusina para ir cortar o cabelo,
atravessando uma Nova Iorque completamente engarrafada em dia de
visita presidencial e envolvida por uma atmosfera apocalítica recheada de figuras
estranhas e manifestações de revolta.
Citando:
·
“Acho que te dedicas ao saber. Acho que adquires informação que
depois transformas numa coisa estupenda e horrível.”
·
“Que nos quer fazer acreditar que há tendências e forças
previsíveis. Quando na realidade tudo não passa de fenómenos aleatórios.
Aplicamos a matemática e outras disciplinas, sim, mas, no fim de contas,
estamos a lidar com um sistema descontrolado.”
·
“Foste tu que me mostraste isto. Como os ciclos do mercado têm
muito em comum com os ciclos temporais da reprodução do gafanhoto, da colheita
do trigo. Tu aperfeiçoaste esta forma de análise, conferiste-lhe uma precisão
horrível, sádica. Mas esqueceste-te de qualquer coisa pelo caminho. (…) Da
importância das assimetrias, dos objetos ligeiramente enviesados. Procuravas o
equilíbrio, a beleza do equilíbrio, partes iguais, lados iguais.”
·
“Toda a riqueza de converteu em riqueza pela riqueza. Não existe
outro género de riqueza colossal. O dinheiro perdeu o seu caráter narrativo,
tal como já sucedera em tempos à pintura. O dinheiro já não tem interlocutor.”
·
“O dinheiro gera o tempo. Dantes era ao contrário. O tempo
cronológico acelerou a ascensão do capitalismo. As pessoas deixaram de pensar
sobre a eternidade. Começaram a concentrar-se em horas, horas mensuráveis,
horas humanas, usando o trabalho de uma maneira mais eficiente.”
·
“Porque o tempo passou a ser um ativo empresarial. Pertence ao
sistema de mercado livre. O presente é mais difícil de encontrar. Está a ser
sugado, eliminado do mundo para dar lugar ao futuro dos mercados livres e do
potencial de investimento colossal. O futuro torna-se insistente. É por isso
que algo vai acontecer em breve, talvez hoje.”
Cronenberg é o “metteur en scène” e argumentista de uma história alheia a que deseja acrescentar sem deixar de ser fiel porque habitante de um universo próximo. Começa por retratar com grande eficácia, a partir do interior quase concentracionário de uma limusina onde o protagonista se vai cruzando com diversas personagens, a evolução mental de um Eric sem limites materiais ou morais, esgotado nas suas ambições (dinheiro, arte, sexo), crescentemente encerrado na sua desconexão face aos sentimentos e à realidade. Acaba por fazer emergir, de forma igualmente absorvente, um homem asfixiado pela ultrapassagem das suas próprias obsessões (saúde, dor, segurança) e pela chegada do seu confronto com as consequências. E o longo diálogo final com Benno Levin condensa, quase em girândola, tudo quanto opera no nosso presente (género humano, fosso social, alta finança, capitalismo sem regras, globalização) e perturba um futuro que “nunca consegue ser o lugar cruel e feliz que nós queríamos que fosse”.
Citando de novo: “Eu tenho a história, como se costuma dizer, do
meu lado. Tens de morrer por causa da maneira como pensas e ages. Por causa do
teu apartamento e do dinheiro que pagaste por ele. Por causa das tuas consultas
médicas diárias. Só isso bastava. Consultas médicas todos os dias. Por causa de
tudo o que tinhas e de tudo o que perdeste, na mesma medida. Por teres perdido
o dinheiro, não menos do que pelo facto de o teres ganho. Por causa da limusina
que polui o ar de que as pessoas precisam para respirar no Bangladesh. Só isso
bastava.”
Deliciosa, ainda, a passagem em que Elise refere: “Uma pessoa
aprende coisas sobre os países onde reina o caos andando de táxi aqui”…
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