terça-feira, 26 de junho de 2012

SETENTA

Ela, a vida, a correr vertiginosa. Crescem os septuagenários impensáveis: anteontem Dylan, ontem McCartney, hoje Gil, amanhã Caetano, depois Chico. Sendo que a alternativa não parece melhor…

Vem o desabafo diretamente a propósito do aniversário que hoje se celebra de Gilberto Gil (caricatura abaixo de Ricardo Alonso, http://jottas.wordpress.com), mas serve também para referenciar o projeto “Depoimentos para a Posteridade” do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro: em curso desde 1966, esse notável programa de história oral foi criado para preservar a memória de diversos setores da cultura brasileira (música, literatura, cinema, artes plásticas) e já conta com um acervo de mais de mil depoimentos e quatro mil horas de material gravado em áudio e vídeo.


Chegada a sua vez, Gil por lá passou este mês, numa conversa de quase seis horas em torno da sua vida pessoal, artística e política. E desbobinou, contando e dizendo coisas como, entre tantas, a seguinte dúzia:

  • “Recordar é mais do que viver. É viver duas vezes. São dimensões novas. Se foi ferida, já curou. Se foi prazer, já desvaneceu.”

  • “Não havia [racismo]. Primeiro, por eu ser de uma classe média elevada para os padrões, minha família pertencia à burguesia daquela cidade [Ituaçu]. Esse é um dos aspetos que marcam a questão racial, a emancipação econômica. Isso marca até mais do que raça no Brasil. Eram todos clientes do meu pai, que tratava os pobres e os ricos, os pretos e os brancos.”

  • “[Quando era fiscal da alfândega portuária na Bahia], lia O Capital, de Karl Marx, de olho nos navios, para detetar contrabando.”

  • “Uma vez perguntaram para o meu pai numa entrevista: 'O que o senhor acha dessa coisa do tropicalismo, com a qual o seu filho se meteu?' E ele respondeu: 'Tropicalista mesmo sou eu!' Ele era medico e tratava de doenças tropicais.

  • “Fui à passeata contra a guitarra elétrica por compaixão, porque eu não só não acreditava naquilo como estava providenciando as minhas próprias guitarras elétricas. Mas Elis me chamou e eu não tinha como dizer não. Eu fui por ela, eu não tinha coragem de dizer não a ela.”


  • “Por causa da necessária resistência ao golpe, surgem a chamada música popular brasileira e a famosa sigla MPB. Cheguei a fazer parte do Centro Popular de Cultura (CPC), mas no meu diálogo com a turma comunista em Salvador, eu aparecia sempre como um viés. Eu não tinha 100% de alinhamento com as ideias deles, que tinham uma denominação específica para esse tipo de gente: chamavam de 'linha auxiliar'.

  • “Eu dizia nas minhas discussões: 'Não acredito nessa utopia!' Nunca acreditei nesse grau perfeito de harmonia definitiva na sociedade humana. E isso só piorou com o passar do tempo. Sou partidário do 'caminho do meio', na igual possibilidade dos extremos. Mas o maniqueísmo da época exigia justamente estas extremidades.”

  • “Flora teve um papel importante, o de unificar a família, essa superfamília, a transfamília que se formou [quatro casamentos, oito filhos]. Ajudou a recuperar minha amizade com Belina, com Sandra, com a Nana.”

  • “Fiz uma reunião na minha casa para pensar na proposta. Pensei em conjunto. Chico disse assim: 'Para você pode ser uma complicação. Para nós vai ser ótimo.' Não tenho nenhum arrependimento. Pelo contrário: tenho muitas boas lembranças. Sou grato ao presidente Lula e a mim mesmo por ter tido essa experiência.”

  • “Poder político nós tínhamos, estávamos sob o guarda-chuva do presidente Lula. Fui um ministro mais do verbo do que da verba.”

  • “Entendo o que Chico quer dizer, mas não acredito que a canção vá desaparecer, vá deixar de existir. As mães, pelo menos algumas delas, vão continuar cantando canções de ninar para os filhos.”

  • “Na dimensão humana, das pessoas, dos homens, esses a quem a vida deu a possibilidade de especular sobre o significado dela, na vida desses homens há a dimensão individual - 'quem sabe de mim sou eu, aquele abraço' -, que é a pessoa com seus próprios botões, preocupações, êxtases, lamúrias. A outra dimensão é a histórica, aquela que não pertence propriamente à pessoa: seu modo de criar, o jeito como é compreendido, aceito ou rejeitado pela sociedade. Mas são critérios da sociedade, não são suas coisas, é o jeito como o mundo o tem para si. Esse sou eu: eu, cá com meus botões de carne e osso, só eu posso pensar se Deus existe, coisas minhas que às vezes também torno públicas em minha carreira. O que sobra é o Gil do mundo, da História. Eu sou parcialmente gente e sou parcialmente ente. Histórico.”    

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