sábado, 9 de junho de 2012

TRAIÇÃO


Saíu de horário nobre por força de ditames mediático-futebolísticos – importava conhecer exaustivamente a ementa do chefe Hélio para o dia, saber mais detalhes sobre uma diarreia do Nani, ouvir polacas dizerem-se conhecedoras de Cristiano Ronaldo, reanalisar os comentários de Humberto Coelho às justas críticas de Manuel José, partilhar a tristeza dos jogadores, discutir ao pormenor os prós e contras de Veloso vs. Custódio ou de Postiga vs. Almeida e tratar toda uma vasta gama de outros tantos temas relevantérrimos como os hábitos sexuais dos nossos adversários alemães – mas sobreviveu em bom plano e voltou a fornecer-nos motivos variados de reflexão. Falo, obviamente, de mais um “Quadratura do Círculo”.

Com a sua habitual lucidez e frontalidade, José Pacheco Pereira (JPP) foi muito claro na avaliação do primeiro ano do Governo ao considerar a atuação deste como integrando uma componente de mérito (até com “excesso de zelo”) – “o Governo conseguiu ultrapassar a atitude de irritação inicial, ou seja, o Governo é hoje bem visto e, portanto, a atitude da Troika e dos alemães em particular, que era uma ideia punitiva, está mudada” – e uma dimensão de deficiência estrutural - a forma de aplicação do programa decorre de “uma ideia um bocado profética e milenária, e do meu ponto de vista muito ignorante sobre a realidade” por parte do primeiro-ministro (“basta controlar o défice, basta o País atingir o equilíbrio entre o que ganha e o que gasta”) e assenta “sobretudo no fisco” (“não há ali nenhuma reforma estrutural, mata-se tudo à volta e quebra-se a possibilidade de sucesso”).

Pegando numa afirmação de JPP – “de facto, a senhora Merkel tinha um compromisso com o engenheiro Sócrates” –, António Costa (AC) foi direito a um assunto em que amiúde tenho insistido neste espaço ao afirmar: “Hoje é certo e seguro que havia um acordo entre o anterior Governo português e os parceiros europeus – e designadamente a Alemanha – que permitia o financiamento da economia portuguesa, o financiamento do Estado português, poupando-o ao dano de imagem e aos custos de uma intervenção externa como a da Troika. (…) E a contrapartida disso era o PEC 4.” E disse mesmo mais: “A razão pela qual o PSD começou por dizer aceitar o PEC 4 de manhã e não o aceitou à noite é porque percebeu que se estava a passar ali aquela pequena fronteira que viabilizava uma solução, poupando uma crise política e poupando Portugal à intervenção externa. E o PSD quis a intervenção externa.” Hábil e não querendo tirar todas as implicações desta sua leitura – que só podiam ter um nome: traição! –, AC preferiu então concluir que quiseram a intervenção externa “porque acharam e sentiram que a Troika era o excelente pretexto para a execução de um programa que Passos Coelho sempre disse que tinha (…) e que nunca julgou ter condições para executar.”

Já sobre António Lobo Xavier se poderá dizer que foi procurando resistir a um dos programas mais incómodos que se lhe têm apresentado nos últimos tempos, perdido entre reinterpretações borgianas e outros compromissos. A sua resposta a AC – “A teoria do António Costa sobre a história supõe que a gente acredite ou se conforme com a ideia de que o PEC 4 seria suficiente para resolver o problema português. (…) O que se sabe é que o PEC 4, quaisquer que fossem os acordos da senhora Merkel com Sócrates, era absolutamente inadequado e insuficiente para as condições exatas da economia portuguesa.” – merece também nota negativa, sobretudo devido à sua opção deliberada de se colocar “à côté” do essencial: porque se de facto, ao contrário do que insinuou AC, o PEC 4 não resolvia o problema de fundo, ele permitia, isso sim, ganhar tempo. Permitia, digamos assim, jogar um jogo ajustado à lentidão e incapacidade decisional dos responsáveis europeus e, entre taticismos e adiamentos, teríamos certamente evitado a humilhação do resgate formal e estaríamos hoje a ser parte menor de uma mais honrosa solução ibérica. Traição pois, repita-se!

Ponho ainda um pouco mais na carta com a ajuda de uma nota final sobre AC. É que, a meu ver, a questão económica não pode ser apresentada como ele o fez: a de haver uma parte importante da direita que tem relativamente ao País o sonho de que ele vai ser competitivo por via do empobrecimento. Porque o empobrecimento não é uma escolha de alguns ético-ideológico-politicamente maus mas uma consequência mais ou menos inelutável das condições objetivas em presença – dito isto, e no enquadramento europeu e monetário em que estamos inseridos, sobra como fulcral um outro ponto: o de que o grau de empobrecimento e o ritmo de aproximação ao mesmo serão tanto maiores quanto mais fragilizado estiver o respetivo alvo/destinatário.

Concluo com recurso à gravura em madeira “Judas Dead” (ou “A máscara caíu”) da artista britânica do século passado Gwen Raverat, acima reproduzida, a qual permite recordar que a traição marca por vezes o começo, e não o fim de uma história…

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