Saíu de horário nobre por força de ditames
mediático-futebolísticos – importava conhecer exaustivamente a ementa do chefe
Hélio para o dia, saber mais detalhes sobre uma diarreia do Nani, ouvir polacas
dizerem-se conhecedoras de Cristiano Ronaldo, reanalisar os comentários de
Humberto Coelho às justas críticas de Manuel José, partilhar a tristeza dos
jogadores, discutir ao pormenor os prós e contras de Veloso vs. Custódio ou de
Postiga vs. Almeida e tratar toda uma vasta gama de outros tantos temas
relevantérrimos como os hábitos sexuais dos nossos adversários alemães – mas
sobreviveu em bom plano e voltou a fornecer-nos motivos variados de reflexão.
Falo, obviamente, de mais um “Quadratura do Círculo”.
Com a sua habitual lucidez e frontalidade, José Pacheco Pereira (JPP)
foi muito claro na avaliação do primeiro ano do Governo ao considerar a atuação
deste como integrando uma componente de mérito (até com “excesso de zelo”) – “o Governo
conseguiu ultrapassar a atitude de irritação inicial, ou seja, o Governo é hoje
bem visto e, portanto, a atitude da Troika e dos alemães em particular, que era
uma ideia punitiva, está mudada” – e uma dimensão de deficiência estrutural - a forma de
aplicação do programa decorre de “uma ideia um bocado profética e milenária, e
do meu ponto de vista muito ignorante sobre a realidade” por parte do
primeiro-ministro (“basta controlar o défice, basta o País atingir o equilíbrio
entre o que ganha e o que gasta”) e assenta “sobretudo no fisco” (“não há ali
nenhuma reforma estrutural, mata-se tudo à volta e quebra-se a possibilidade de
sucesso”).
Pegando numa afirmação de JPP – “de facto, a senhora Merkel tinha um
compromisso com o engenheiro Sócrates” –, António Costa (AC) foi direito a um assunto em que amiúde tenho
insistido neste espaço ao afirmar: “Hoje é certo e seguro que havia um
acordo entre o anterior Governo português e os parceiros europeus – e
designadamente a Alemanha – que permitia o financiamento da economia
portuguesa, o financiamento do Estado português, poupando-o ao dano de imagem e
aos custos de uma intervenção externa como a da Troika. (…) E a contrapartida
disso era o PEC 4.” E disse mesmo mais: “A razão pela qual o PSD começou por dizer
aceitar o PEC 4 de manhã e não o aceitou à noite é porque percebeu que se
estava a passar ali aquela pequena fronteira que viabilizava uma solução,
poupando uma crise política e poupando Portugal à intervenção externa. E o PSD
quis a intervenção externa.” Hábil e não querendo tirar todas as implicações
desta sua leitura – que só podiam ter um nome: traição! –, AC preferiu então
concluir que quiseram a intervenção externa “porque acharam e sentiram que a
Troika era o excelente pretexto para a execução de um programa que Passos
Coelho sempre disse que tinha (…) e que nunca julgou ter condições para
executar.”
Já sobre António Lobo Xavier se poderá dizer que foi procurando
resistir a um dos programas mais incómodos que se lhe têm apresentado nos
últimos tempos, perdido entre reinterpretações borgianas e outros compromissos.
A sua resposta a AC – “A teoria do António Costa sobre a história supõe que a
gente acredite ou se conforme com a ideia de que o PEC 4 seria suficiente para
resolver o problema português. (…) O que se sabe é que o PEC 4, quaisquer que
fossem os acordos da senhora Merkel com Sócrates, era absolutamente inadequado
e insuficiente para as condições exatas da economia portuguesa.” – merece
também nota negativa, sobretudo devido à sua opção deliberada de se colocar “à
côté” do essencial: porque se de facto, ao contrário do que insinuou AC, o PEC
4 não resolvia o problema de fundo, ele permitia, isso sim, ganhar tempo.
Permitia, digamos assim, jogar um jogo ajustado à lentidão e incapacidade decisional
dos responsáveis europeus e, entre taticismos e adiamentos, teríamos certamente
evitado a humilhação do resgate formal e estaríamos hoje a ser parte menor de
uma mais honrosa solução ibérica. Traição pois, repita-se!
Ponho ainda um pouco mais na carta com a ajuda de uma nota final
sobre AC. É que, a meu ver, a questão económica não pode ser apresentada como ele o
fez: a de haver uma parte importante da direita que tem relativamente ao País o
sonho de que ele vai ser competitivo por via do empobrecimento. Porque o
empobrecimento não é uma escolha de alguns ético-ideológico-politicamente maus
mas uma consequência mais ou menos inelutável das condições objetivas em
presença – dito isto, e no enquadramento europeu e monetário em que estamos
inseridos, sobra como fulcral um outro ponto: o de que o grau de empobrecimento
e o ritmo de aproximação ao mesmo serão tanto maiores quanto mais fragilizado estiver o respetivo alvo/destinatário.
Concluo com recurso à gravura em madeira “Judas Dead” (ou “A
máscara caíu”) da artista britânica do século passado Gwen Raverat, acima
reproduzida, a qual permite recordar que a traição marca por vezes o começo, e
não o fim de uma história…
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