Com Portugal e Grécia a revelar as conhecidas
dificuldades de encontrar um equilíbrio entre consolidação orçamental e
competitividade/crescimento e a Irlanda, apesar da sua base exportadora já
instalada, continuar bastante aquém dos níveis de produto pré-crise, o mito da
austeridade expansionista carece de efeitos de demonstração. Ou seja, não há
cartilha sem o seu herói e estes neste caso não abundam. Bastaria os níveis de
desemprego em todas estas experiências para abalar qualquer cartilha, mas os
seus autores convencionaram ignorar a dimensão desse flagelo social.
Por isso, a Letónia tem sido apontada pelos autores da
cartilha como um exemplo de recurso.
A Letónia, depois de um surto de crescimento
significativo, experimentou os impactos da crise internacional, invertendo
rapidamente a sua performance macroeconómica, solicitando ajuda do FMI. A
curiosidade está no facto da Letónia ter assumido um programa de ajustamento
fiscal, embora rejeitando aceitar a depreciação da sua moeda.
A recuperação que a Letónia conseguiu em quatro anos em
termos de crescimento e de equilíbrios na balança corrente externa e nas contas
públicas é agora apontada como o tal exemplo que faltava à cartilha tão deles
necessitada.
Mas diferentes economistas têm questionado o efeito
demonstração do caso Letónia, sobretudo a sua replicabilidade noutros
contextos.
Hoje, menciono sobretudo o caso de Olivier Blanchard
(MIT), atualmente nas funções de economista-chefe do FMI.
Em artigo recente no VOX, relembra primeiro os custos
substanciais do ajustamento operado, designadamente sociais, assinalando a
perda de produto observada (ainda abaixo cerca de 15% do nível pré-crise) e os
ainda 16% de desemprego (redução apenas de 5 pontos percentuais face ao máximo observado
durante o penoso ajustamento). Blanchard identifica depois as condições de
especificidade do caso letão, mostrando-se muito crítico sobre a
replicabilidade da experiência noutros contextos.
Não vou aqui recuperar todos os elementos sublinhados por
Blanchard. Limitar-me-ei a destacar duas das especificidades por ele
identificadas. Primeiro, uma grande parte dos ganhos de competitividade consistiu
em ganhos de produtividade, apesar do ajustamento descendente de salários públicos.
Depois, a forte especificidade do peso da dívida: inicialmente ele não
ultrapassava os 10% do PIB, situando-se atualmente em torno dos 40% do PIB. E já
não cito a orientação fortemente exportadora da economia, já que essa característica
é também partilhada pela Irlanda.
Resumindo, das reflexões do economista-chefe do FMI
ressalta a ideia de que tentar projetar a experiência da Letónia como paradigma
insinuante para as economias do sul parece não colher. E, por isso, a cartilha
continua a não ter evidência disponível para demonstrar a sua presumida eficácia.
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