Nesta vida de
andarilho do planeamento, com uso frequente da navette ferroviária
Porto-Lisboa, alguma coisa do que vou escrevendo tem como espaço de concretização
o Alfa pendular, cada vez mais instável e pouco propício à escrita (ah! estas obras
da linha do Norte continuam um mistério intrigante).
Foi o caso da presente
crónica. Mas o contexto em que ela foi redigida, só por curiosidade o refiro, processou-se
numa perfeita cacofonia de telemóveis e de conversas despudoradas e reveladoras
das mais profundas intimidades. Mesmo atrás de mim, um senhor empresário de uma
empresa de transportes logísticos e de operação de máquinas passou a santa
viagem a descompor um tal senhor Avelino pela má operação realizada com uma
determinada máquina e a investir sobre uma tal Fatucha (que bonita intimidade
entre patrão e funcionária!) sobre a desorganização do escritório e sobre uma determinada
operação de IVA que não devia ter sido realizada. Mesmo ao lado, uma aguerrida
supervisora de lojas em diferentes centros comerciais (as viagens do Alfa são
um verdadeiro alfobre empírico de situações novas no mercado de trabalho)
discutia com o chefe mais direto pormenores de uma reunião em Lisboa com altos
superiores (este fascínio pelas estruturas centrais!), metendo pelo meio o
picante de ir servir de testemunha da empresa num caso contra uma funcionária
que mantinha um caso amoroso com outro funcionário e que utilizava as instalações
da loja para consumar a sua tórrida paixão, a quem a dita designava de “a gaja”
afirmando com personalidade a sua pronúncia do Porto. Um pouco mais distante,
uma jovem super-mãe, vinda sabe-se lá de que reunião enfadonha, acompanhava à
distância os trabalhos de casa de uma das filhas. Ainda no raio de influência
dos meus ouvidos (que já não é muito amplo) uma jovem adolescente conduzia ao
telefone uma daquelas conversas lamechas e sem graça que devem ser o melhor remédio
para o namorado manter casta a relação.
Tudo isto na compressão
da carruagem 3, bem mais pequena que as demais, já que o bar ocupa uma superfície
relevante (viaja-se em segunda porque a contenção de custos assim o recomenda).
A minha relação com o despudor
da revelação da intimidade telefónica é por vezes traumática, porque
considero-me propenso a ouvir o que não devo. Recordo que, estava este blogue
no seu começo, apanhei à minha esquerda com o incrível Fernando Nobre,
ex-candidato derrotado à Presidência da República. E perante a minha surpresa,
lá pelas bandas de Aveiro, eis que senão quando dou a perceber que o Fernando Nobre
estava a telefonar a sua Excelência D. Duarte, dando-lhe conta que iria voltar às
lides, anunciando profeticamente que muitos o desejavam e que iria promover um
almoço-tertúlia para dar conta a alguns jornalistas do seu regresso às lides. Na
altura, por simples pudor não relatei aqui neste espaço essa convivência com a
mensagem telefónica ali expedida, em tom tudo menos de confidencial. Pelos
vistos, não fiz mal, pois esse regresso às lides de tão estranha personagem não
se concretizou por qualquer inibição ou contratempo.
Por todas estas razões,
hesito frequentemente em orientar as minhas antenas auditivas para tão estranha
forma de despudor pela intimidade telefónica. Sobretudo, porque como fraco “conector”
o raio do meu telefone não toca, mesmo que me apresente com o ar mais executivo
(casual, claro) que me é possível.
E com tudo isto,
distraído por toda esta cacofonia de telefones topo de gama, só agora me
concentro no gráfico de Krugman, que sublinha comparativamente a diferente
trajetória da taxa de desemprego na economia americana e na zona euro.
Há uns anos, atribuiríamos
este comportamento divergente à rigidez do mercado de trabalho europeu e à pretensa
flexibilidade do americano. Hoje, refletindo bem, a divergência assinalada no
período considerado significa essencialmente uma diferente política macroeconómica
de intervenção no pós grande recessão e continuidade para a crise das dívidas
soberanas: estímulo fiscal e política monetária mais agressiva nos Estados Unidos
e incapacidade de ter um rumo coerente na zona euro.
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