quinta-feira, 13 de julho de 2023

O LAMENTO ANGUSTIADO DA NATA DO DOURO

 

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(Acaba de ser tornado público um documento-testemunho, designado de “O Douro Merece Melhor”, assinado por aquilo que designaria da nata do Douro e dos seus descendentes já no ativo, sejam eles produtores, viticultores, enólogos, exportadores, distribuidores e personalidades afetivamente ligadas à Região. De uma análise breve das assinaturas de promotores do documento e outros apoios consegui perceber que só a gente mais ligada à Taylor’s /Fladgate não se quis comprometer com este lamento angustiado, mas isso não é novidade, antes uma regularidade. Tal como já o referi noutras ocasiões neste blogue, a coordenação de um dos primeiros Planos Estratégicos para o vinho do Douro e Douro DOC encomendado pelo IVDP e que realizei em colaboração com uma equipa da Católica do Porto e uma outra da UTAD liderada pelo Professor João Rebelo é uma das minhas mais relevantes e retribuidoras experiências de consultoria, não apenas pela complexidade do tema, mas sobretudo pela riqueza de testemunhos e perspetivas que reuni ao longo do trabalho. Em 2015, tive a oportunidade, agora para a Associação das Empresas do Vinho do Porto, de atualizar o diagnóstico de 2007-2008. Através dessa experiência, compreendi o mundo da sedução que o vinho do Porto e dos vinhos Douro DOC suscitam, mas em simultâneo gerei a convicção de que só os mais competentes e capazes estarão em condições de mergulhar e sobreviver nessa sedução. É com base na reminiscência dessas experiências, que nunca esquecerei, que analiso o documento-testemunho acima referido, com aquela perspetiva crítica só acessível a quem não é da Região e a quem não tem quaisquer interesses na mesma.)

O documento-testemunho começa por puxar pela inimitabilidade da Região Demarcada do Douro, pela sua importância quantitativa e qualitativa, pela sua relevância internacional que, por um lado, o Estatuto de Património Mundial da UNESCO e, por outro, o reconhecimento turístico e da mais sofisticada procura de vinho do Porto e de vinhos Douro DOC permanentemente asseguram.


 

Nesta matéria, mais acordo do que o existente é impossível. Ele é unânime e, do ponto de vista regional, a aplicação dos Fundos Estruturais tem-lhe dedicado uma forte discriminação positiva, que tem causado alguns engulhos a outras regiões, tais como por exemplo o Minho.

De seguida, a nata dos subscritores traz para o testemunho a evidência mais abundantemente citada na generalidade dos estudos disponíveis – a queda das vendas físicas de vinho do Porto (descida de quase 25% para um valor recente de 7,8 milhões de caixas de 9 litros, embora com alguma resistência em termos de valor) e o simultâneo crescimento das vendas de Douro DOC para um valor recente de 5,2 milhões de caixas. Entendamo-nos. Esta evolução corresponde claramente ao esperado. Alguém ousaria prever que, nas condições atuais de consumo de bebidas alcoólicas, de organização social e familiar e de envelhecimento progressivo das populações que alimentaram a procura de vinho do Porto, a procura física de vinho do Porto poderia ter um comportamento distinto do efetivamente observado? Já há longo tempo, que os players mais representativos da exportação de vinho do Porto perceberam que a evolução desejável seria a de contrapor à descida da procura física o aumento da procura em valor e uma grande parte das estratégias praticadas (vintages e colheitas específicas) apontaram para esse desígnio. A principal preocupação a sublinhar não é propriamente a queda da procura física, mas antes as faixas de preços que continuam a ser praticadas para o vinho do Porto por algumas grandes cadeias de distribuição internacional. Mas se está nas prateleiras a esse preço alguém o vendeu …

Mais interessante é a ponta da discussão aberta pelo documento quanto contrapõe a esta evolução estrutural a imutabilidade do quadro regulamentar, muito complexo, que enquadra a produção e distribuição na RDD, desde o sistema de benefício (amor e ódio por este sistema, que vai aguentando o negócio, mesmo que frequentemente subvertido pelos comportamentos dos sistemas de atores) até às também complexas regras de imobilização de stocks de vinho, regra geral mais incómodas quando as taxas de juro estão em alta.

De facto, o que está essencialmente em casa neste imobilismo regulamentar é o problema da sustentabilidade do setor. E não estou a referir-me à sustentabilidade ambiental, ameaçada pela incidência da mudança climática na Região, em relação à qual os players mais representativos (Symington, Sogrape, Fladgate e Rosés) cedo e pioneiramente tomaram medidas de grande alcance, na linha do que são as boas práticas mundiais nesta matéria.

O problema central é que, como o refere o documento, muitas uvas estão a ser vendidas abaixo do custo de produção, transformando-se no principal fator de insustentabilidade da RDD, levando ao desaparecimento de viticultores e abandono da vinha, cujos efeitos tenderão a ir bastante além do que poderia ser uma saída promissora, o aumento da superfície média das explorações e aposta na qualidade.

E é aqui que começa a minha perplexidade. Toda esta história foi contada nos estudos do Plano Estratégico para o IVDP de 2007-2008, estando também presente na atualização da componente de diagnóstico realizada para a AEVOP – Associação das Empresas do Vinho do Porto. Estamos assim com 15 anos passados de permanência de um diagnóstico que está cada vez mais claro e confirmado pela evidência. Neste contexto, o lamento angustiado da nata de subscritores, mais do que um apelo à intervenção pública nesta matéria, representa um atestado de incapacidade de toda esta inteligência e capacidade de iniciativa representada na assinatura deste documento. Não me convence o argumento de que o Douro foi deixado à sua sorte. Posso questionar, por exemplo, o que entidades como o IVDP, a AEVP, o que ficou da Casa do Douro e deveria preencher o seu papel, a UTAD, cooperativas existentes, os Autarcas, a CIM Douro, as associações de desenvolvimento aqui instaladas fizeram para combater o estado de coisas, arrastado no tempo, que este documento-testemunho assume de novo como sendo a raiz da insustentabilidade futura, senão atual, do Douro?

É verdade que o documento termina com um apelo aos “produtores, aos viticultores, aos comerciantes e respetivas Associações, ao Ministério da Agricultura, à CIM Douro e ao Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto”, invocando a necessidade de “uma estratégia para o futuro construída numa base científica liderada por uma entidade independente, em consulta com os stakeholders chave da Região”. O tema da entidade independente regressa: um IVDP revigorado, com autonomia face ao Estado? Ou outra modalidade qualquer concebida de raiz e integrando a componente interprofissional? Mas 15 anos não foram suficientes para medir forças e avaliar condições para mais do que um apelo concretizar algo palpável?

Reconheço que se trata de um cliché já gasto pelo tempo, mas a máxima de John Kennedy parece aplicar-se a este universo do Douro: “Não perguntem o que é que o vosso país pode fazer por vocês, perguntem o que é que vocês podem fazer pelo vosso país", neste caso, o que podem fazer pelo Douro.

Estou ciente que intervir num sistema altamente regulado como é este da RDD implica um bisturi de grande qualidade e lentes de aprofundamento de visão. Haverá seguramente margens de manobra incremental para mexer no sistema de benefício e adaptá-la à realidade da presença crescente dos Douro DOC, já que o método de classificação de vinhas tem de ser adaptado aos padrões de qualidade destes vinhos. E tal como o referi com clareza há 15 anos, à qual muito pouca gente reagiu, pretender misturar a proteção dos pequenos produtores com os problemas da modernização, melhoria de produtividade (limitadas dadas as características dos modelos de produção) e melhoria da qualidade repercutida em faixas de preços mais elevadas equivalerá seguramente a asneira da grossa. A Região tem que ser dotada de um Fundo de Apoio Social para atacar esse problema da vulnerabilidade dos pequenos produtores.

Não quero ser pessimista, mas se continuar a predominar a ideia de que a solução não deve partir de dentro, mas antes resultar de uma ajuda milagrosa, talvez daqui a alguns anos a nata mais jovem continuará a fazer apelos desta natureza, afagando e lavando consciências, mas inoperantes e provavelmente com diagnóstico agravado.

 

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto. Onde consigo aceder aos estudos descritos no texto? Obrigado.

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    1. Caro Filipe
      Se me enviar o seu e-mail poderei enviar-lhe em vários mails os PDF destes relatórios.
      O meu e-mail na Quaternaire é afigueiredo@quaternaire.pt
      Aguardo o seu e-mail para lhe enviar os materiais.

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