Já aqui referi que, por via da sugestiva indicação do meu
amigo Mário Rui Martins (Conselho da Europa), cheguei muito recentemente à
leitura de um artigo do início do presente ano, publicado na revista Foreign Affairs, de autoria de Francis Fukuyama, designado de “The Future ofHistory”.
Não vou aqui regressar aos desencontrados ecos da controvérsia, suscitada primeiro pelo artigo e depois pela obra, surgidos nos fins da década de
80, a que a tese de Fukuyama sobre o alegado fim da história está indissociavelmente ligada.
O artigo em questão não se afasta decisivamente do tom
mais interrogativo do que afirmativo que Fukuyama suscitou no controverso
contributo sobre o alegado fim da história. Mas tem aspetos que refletem a
internalização no seu pensamento de dimensões novas trazidas não só por questões
emergentes no mundo árabe e oriente em geral, mas também pelas consequências da
Grande Recessão de 2008 que se abateram sobretudo sobre a economia americana e
sobretudo pelo seu anómalo prolongamento para os tempos que correm.
A dimensão analítica que me interessa vivamente é a relação
que Fukuyama estabelece entre a sobrevivência da democracia liberal (apresentada
no artigo de 1989 com um triunfo inquestionável, uma espécie de fim de linha da
evolução política) e a ascensão e queda da classe média, por mais complexa que
seja a definição rigorosa deste grupo social.
Fukuyama está atento aos efeitos que a ascensão da classe
média em países como a China e a sua emergência como elemento de dinamite
social nas sociedades árabes, despertadas pela sua Primavera democrática, poderão
exercer como desafios de transformação dos modelos políticos mais autocráticos
(embora não rejeitando plenamente o apelo do mercado). No caso chinês, haverá
que acompanhar a evolução do crescimento económico e principalmente a “expertise”
das camadas dirigentes comunistas em gerir mais este desafio à sobrevivência do
modelo. No caso das Primaveras árabes, algumas das quais rapidamente em rota
para verões muito quentes e violentos, a questão principal estará em saber se as
classes médias alegadamente aí emergentes não irão, não direi sucumbir, mas
pelo menos ser enquadradas pela força organizativa e de convicção das
componentes islâmicas de tais sociedades. Se tal acontecer, não é seguro que a
democracia liberal, mesmo que atamancada ou adaptada à base de valores morais e
religiosos de tais sociedades, não ceda as suas esperanças à força de regimes
mais teocráticos (será possível uma primavera no Irão?).
Mas a dimensão do novo artigo de Fukuyama que mais me
atrai é o seu foco de atenção sobre a erosão acelerada da classe média das
sociedades ocidentais e sobretudo sobre o impacto que tal erosão está a
provocar na transformação das democracias liberais. Fukuyama analisa sobretudo
a tensão que esse declínio provoca entre os populismos políticos de direita
(tipo TEA PARTY nos EUA e no já substancialmente alterado Paulo Portas “style”
a nível nacional) e as posições da esquerda política. A explicação do declínio
da classe média que Fukuyama apresenta é provavelmente demasiado esquemática,
baseada no binómio tecnologia e globalização. Há teses mais elaboradas sobre o
problema (designadamente a que analisa a chamada polarização do emprego), mas
por agora interessa-me apenas registar o óbvio: a erosão da classe média existe
e está, aliás, no auge com o prolongamento cego do mito da austeridade
expansionista.
E Fukuyama é particularmente duro e crítico sobre a evidência
de que em todo este processo a esquerda está ausente. Fala duramente da sua
falta de credibilidade e sobretudo de uma solução estafada de invocação do
modelo social-democrata do Estado social ou protetor, considerado pelo autor
exaurido. É uma posição mais ou menos equivalente à dura crónica de Vasco
Pulido Valente de ontem, sábado, sobre o líder do Partido Socialista e sobre a
fixação que é feita sobre os fins desse Estado social ou protetor sem
questionar ou elaborar sobre os métodos ou os instrumentos que podem tornar
possível a louvável defesa de tais princípios.
Por mais incómodas que possam ser estas posições, não
adianta à esquerda colocá-las no índex da indiferença ou simplesmente queimá-las
como indesejáveis. Acho mesmo que é necessário partir desses discursos mais críticos
e gerar, primeiro conceptualmente, depois em termos de estratégias políticas
concretas, alternativas.
Primeiro, os populismos de esquerda estão hoje, mediaticamente
e na rua, dominados por movimentos do tipo “OCCUPY”. A sua heterogeneidade é
manifesta, claramente mais elaborado o americano, mas até se transformarem, com
comunidade de interesses e de projeto com as classes médias em declínio, vai um
longo hiato.
Fukuyama fala em alguns pontos de uma agenda de
transformação: a supremacia da democracia política sobre a economia e a defesa
de governos em torno do interesse público, o redesenho integral do setor público,
a defesa de variedades do capitalismo mais redistributivas, o controlo político
da globalização e da sua regulação, a luta decisiva pela regulação do setor
financeiro e dos seus desvarios.
Este blogue bate-se por essa revisão. Não adere de modo algum
a defesas simplesmente afetivas e revivalistas da esquerda, do tipo das que por
vezes o sempre respeitável Manuel Alegre transporta para a opinião pública levando
atrás de si gente tão bem intencionada. Não se empolga também por movimentos de
reflexão como a “Esquerda Livre”, pois está especialmente interessado em
influenciar espaços e soluções de governação para estas gerações que vivem o
declínio das sociedades médias e para isso não pode refletir como se as máquinas
partidárias não existissem, mesmo que com elas não se confunda.
Continuaremos em função da realidade nacional a refletir
sobre contributos possíveis para essa revisão.
Para defender um modelo mais distributivo e para garantir
a intocabilidade de alguns direitos sociais, a esquerda deve suscitar outros
modelos de governação, por exemplo em relação à dimensão económica. A esquerda convive
mal com a empresa como célula fundamental de toda a economia de mercado. E
nesta dimensão deverá haver de facto menos Estado, o que não significa deixar
de traçar orientações estratégicas persistentes para as políticas públicas.
É matéria para regressar a ela tão cedo quanto o possível.
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