domingo, 29 de julho de 2012

DO FIM AO FUTURO DA HISTÓRIA


Já aqui referi que, por via da sugestiva indicação do meu amigo Mário Rui Martins (Conselho da Europa), cheguei muito recentemente à leitura de um artigo do início do presente ano, publicado na revista Foreign Affairs, de autoria de Francis Fukuyama, designado de “The Future ofHistory”.
Não vou aqui regressar aos desencontrados ecos da controvérsia, suscitada primeiro pelo artigo e depois pela obra, surgidos nos fins da década de 80, a que a tese de Fukuyama sobre o alegado fim da história está indissociavelmente ligada.
O artigo em questão não se afasta decisivamente do tom mais interrogativo do que afirmativo que Fukuyama suscitou no controverso contributo sobre o alegado fim da história. Mas tem aspetos que refletem a internalização no seu pensamento de dimensões novas trazidas não só por questões emergentes no mundo árabe e oriente em geral, mas também pelas consequências da Grande Recessão de 2008 que se abateram sobretudo sobre a economia americana e sobretudo pelo seu anómalo prolongamento para os tempos que correm.
A dimensão analítica que me interessa vivamente é a relação que Fukuyama estabelece entre a sobrevivência da democracia liberal (apresentada no artigo de 1989 com um triunfo inquestionável, uma espécie de fim de linha da evolução política) e a ascensão e queda da classe média, por mais complexa que seja a definição rigorosa deste grupo social.
Fukuyama está atento aos efeitos que a ascensão da classe média em países como a China e a sua emergência como elemento de dinamite social nas sociedades árabes, despertadas pela sua Primavera democrática, poderão exercer como desafios de transformação dos modelos políticos mais autocráticos (embora não rejeitando plenamente o apelo do mercado). No caso chinês, haverá que acompanhar a evolução do crescimento económico e principalmente a “expertise” das camadas dirigentes comunistas em gerir mais este desafio à sobrevivência do modelo. No caso das Primaveras árabes, algumas das quais rapidamente em rota para verões muito quentes e violentos, a questão principal estará em saber se as classes médias alegadamente aí emergentes não irão, não direi sucumbir, mas pelo menos ser enquadradas pela força organizativa e de convicção das componentes islâmicas de tais sociedades. Se tal acontecer, não é seguro que a democracia liberal, mesmo que atamancada ou adaptada à base de valores morais e religiosos de tais sociedades, não ceda as suas esperanças à força de regimes mais teocráticos (será possível uma primavera no Irão?).
Mas a dimensão do novo artigo de Fukuyama que mais me atrai é o seu foco de atenção sobre a erosão acelerada da classe média das sociedades ocidentais e sobretudo sobre o impacto que tal erosão está a provocar na transformação das democracias liberais. Fukuyama analisa sobretudo a tensão que esse declínio provoca entre os populismos políticos de direita (tipo TEA PARTY nos EUA e no já substancialmente alterado Paulo Portas “style” a nível nacional) e as posições da esquerda política. A explicação do declínio da classe média que Fukuyama apresenta é provavelmente demasiado esquemática, baseada no binómio tecnologia e globalização. Há teses mais elaboradas sobre o problema (designadamente a que analisa a chamada polarização do emprego), mas por agora interessa-me apenas registar o óbvio: a erosão da classe média existe e está, aliás, no auge com o prolongamento cego do mito da austeridade expansionista.
E Fukuyama é particularmente duro e crítico sobre a evidência de que em todo este processo a esquerda está ausente. Fala duramente da sua falta de credibilidade e sobretudo de uma solução estafada de invocação do modelo social-democrata do Estado social ou protetor, considerado pelo autor exaurido. É uma posição mais ou menos equivalente à dura crónica de Vasco Pulido Valente de ontem, sábado, sobre o líder do Partido Socialista e sobre a fixação que é feita sobre os fins desse Estado social ou protetor sem questionar ou elaborar sobre os métodos ou os instrumentos que podem tornar possível a louvável defesa de tais princípios.
Por mais incómodas que possam ser estas posições, não adianta à esquerda colocá-las no índex da indiferença ou simplesmente queimá-las como indesejáveis. Acho mesmo que é necessário partir desses discursos mais críticos e gerar, primeiro conceptualmente, depois em termos de estratégias políticas concretas, alternativas.
Primeiro, os populismos de esquerda estão hoje, mediaticamente e na rua, dominados por movimentos do tipo “OCCUPY”. A sua heterogeneidade é manifesta, claramente mais elaborado o americano, mas até se transformarem, com comunidade de interesses e de projeto com as classes médias em declínio, vai um longo hiato.
Fukuyama fala em alguns pontos de uma agenda de transformação: a supremacia da democracia política sobre a economia e a defesa de governos em torno do interesse público, o redesenho integral do setor público, a defesa de variedades do capitalismo mais redistributivas, o controlo político da globalização e da sua regulação, a luta decisiva pela regulação do setor financeiro e dos seus desvarios.
Este blogue bate-se por essa revisão. Não adere de modo algum a defesas simplesmente afetivas e revivalistas da esquerda, do tipo das que por vezes o sempre respeitável Manuel Alegre transporta para a opinião pública levando atrás de si gente tão bem intencionada. Não se empolga também por movimentos de reflexão como a “Esquerda Livre”, pois está especialmente interessado em influenciar espaços e soluções de governação para estas gerações que vivem o declínio das sociedades médias e para isso não pode refletir como se as máquinas partidárias não existissem, mesmo que com elas não se confunda.
Continuaremos em função da realidade nacional a refletir sobre contributos possíveis para essa revisão.
Para defender um modelo mais distributivo e para garantir a intocabilidade de alguns direitos sociais, a esquerda deve suscitar outros modelos de governação, por exemplo em relação à dimensão económica. A esquerda convive mal com a empresa como célula fundamental de toda a economia de mercado. E nesta dimensão deverá haver de facto menos Estado, o que não significa deixar de traçar orientações estratégicas persistentes para as políticas públicas.
É matéria para regressar a ela tão cedo quanto o possível.

Sem comentários:

Enviar um comentário