O ambiente de suspeição que se instalou em torno da praça
financeira de Londres na sequência do escândalo do Barclays e das alegadas manipulações
de taxas de juro (da LIBOR, London Inter-Bank Offered Rate)) constitui uma
excelente oportunidade para repensar um tema que me é caro já há algum tempo,
que é o questionar da base moral do capitalismo.
De facto, parece acontecer de tudo ao governo conservador
do bem posto Cameron, já suficientemente fragilizado em relações cúmplices e
pouco claras com o magnata da imprensa Murdoch, mesmo tendo em conta que o caso Barclays não é um produto direto desta governação. Para não falar também com a
inconsequente teimosia de persistir no mito da austeridade expansionista em
contexto de muito baixas taxas de juro, limitando-se a umas tantas injeções de
ajuda à economia por via da política monetária (o já aqui falado “quantitative
easing”), sem efeitos visíveis na economia britânica. Com tanta preocupação à
perna não espanta que o casal Camaron tenha esquecido um dos seus filhos
algures em Londres. Para tanta pose conservadora, são fissuras demais.
Mas o caso Barclays evidencia bem que o capitalismo, sobretudo
na sua fase mais extrema de “financialização”, está fortemente dependente de
uma base moral, que seja capaz de manter indestrutível o clima de confiança nos
mercados.
Ora, em meu entender, há hoje duas dimensões que
atravessam centralmente essa base moral.
Uma é o da capacidade distributiva do funcionamento dos
mercados. Quanto a esta dimensão estamos conversados. O aprofundamento das
desigualdades, a progressiva deterioração da abrangente categoria “classe média”
e as novas formas de pauperização que a crise financeira está a criar nas
sociedades de mercado minam irreversivelmente a base moral do sistema. Por mais
desiguais que sejam os níveis de tolerância social para com a desigualdade, o
que está em marcha ultrapassa o limiar do socialmente passível de ser
encaixado. Essa situação tenderá inevitavelmente a provocar efeitos perversos,
comportamentos determinados pelo comportamento socialmente desviante do vizinho
ou dos referentes mais próximos.
A outra dimensão do rombo na base moral é a perversa e
hoje muito disseminada tendência para que o interesse fraudulento mine as relações
de confiança e de informação que os mecanismos de mercado exigem para que as
assimetrias numa relação de mercado sejam o mais atenuadas possível. O próprio
Adam Smith admitia pioneiramente que o princípio do interesse próprio exigia
uma regulação natural determinada pelos comportamentos morais da sociedade,
impondo limites ao desenvolvimento do interesse pessoal, mesmo que a lógica de
mercado exija este último como driver
em última instância de todos os comportamentos passíveis de ter uma expressão
económica. Essa regulação natural está fortemente corrompida.
O “crony capitalism”
ou capitalismo de compadrio é ele próprio uma forma de degradação dessa base
moral e está presente ao rubro, comprometendo em inúmeros temas a divisão
esquerda – direita, sobretudo pelas formas complexas e multifacetadas de
captura de estado que é possível identificar.
É que a base moral de uma utopia socialista alimenta-se
sobretudo do modo como essa utopia é compatível com a manutenção da liberdade e
tem o seu ponto crítico sobretudo no modo como, ao abrigo da intervenção pública
e da sua defesa como instrumento de um modelo mais distributivo e equitativo, a
captura do interesse público em favor do interesse privado compromete toda essa
utopia.
A convergência entre partidos doutrinariamente de
esquerda e direita em torno de temas como o “new management”ou a nova gestão pública ou a sujeição da coisa pública
a modelos de gestão privada é a principal responsável pela degradação da gestão
do interesse público. Não é preciso ser-se um sábio para identificar no dossier
das parcerias público-privadas um exemplo central da degradação a que tenho
vindo a referir-me.
Por isso, o caso do Barclays, que pode arruinar a
seriedade da praça financeira de Londres, é simplesmente a manifestação de uma
questão bem mais geral.
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