domingo, 29 de julho de 2012

TIA BIA




A entrevista de Anabela Mota Ribeiro à fadista Beatriz da Conceição no suplemento do Público de hoje constitui um documento sociológico notável sobre o mundo mais recôndito do fado, um daqueles documentos que deverá ser religiosamente guardado para a posteridade.
Um documento sobre o fado recôndito, sobre o Portugal do salazarismo, tão esquecido no contraponto com os dissabores de hoje, mas também sobre o eterno relacionamento Lisboa – Porto.
Gosto de personalidades que assumam frontalmente a sua identidade, que não a vendam, truculentas, frontais, que desmontem o postiço, que não se enredem nos salamaleques do socialmente correto. Pela entrevista, Beatriz da Conceição é tudo isto, uma espécie de modelo de personalidade em extinção, implacável nos juízos sobre os outros, de linguagem viperina, cáustica, autenticidade plena.
Não sou propriamente um entusiasta do fado, nunca me consegui desligar mentalmente da sua associação ao conservadorismo do antigo regime, mas tenho sido sensível à emergência (muito pós morte de Amália) de uma certa autenticidade de nomes. Muito na linha de Eduardo Prado Coelho tocou-me bastante a emergência de uma personalidade como Aldina Duarte, talvez a primeira a libertar-se do anátema da ligação do fado ao antigo regime e a transmitir uma força de convicções que nunca suspeitara poder existir no mundo do fado. Os discos de Aldina são hoje devoção e a sua denúncia das condições de classe que marcaram a sua infância e adolescência são para mim um documento sociológico de valor testemunhal incomensurável.
Repito, a entrevista é notável. A adolescência no Porto e o primeiro filho aos 18 anos e a ida para Lisboa são neo-realismo puro. O testemunho sobre o mundo boémio, do jogo, os comentários e os juízos sobre Amália, Natália Correia e todo o mundo que gira em torno das casas de fado lisboetas, tudo isto no jeito truculento da linguagem da Tia Bia são uma peça jornalista de grande fôlego e sobretudo de uma autenticidade que dói. As suas palavras sobre personalidades como Camané, Ana Moura, Carminho, Marisa e Cristina Branco e o diferente tom afetivo como as profere são um documento notável para perceber o novo mundo emergente do fado. Vejam o exemplo sobre a Marisa: “A gaja tem tudo marcado no papel como deve fazer. Aqui é altura de chorar. Acreditas? Fogo!”. Na mouche, como te percebemos Tia Bia.
Estranhamente, tinha a ideia de que a Aldina Duarte também circulava nas relações de Beatriz da Conceição. Pelos vistos terei construído essa ficção. Na entrevista, é praticamente o único nome da nova onda que não aparece.

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