A entrevista de Anabela Mota Ribeiro à fadista Beatriz da
Conceição no suplemento do Público de hoje constitui um documento sociológico
notável sobre o mundo mais recôndito do fado, um daqueles documentos que deverá
ser religiosamente guardado para a posteridade.
Um documento sobre o fado recôndito, sobre o Portugal do
salazarismo, tão esquecido no contraponto com os dissabores de hoje, mas também
sobre o eterno relacionamento Lisboa – Porto.
Gosto de personalidades que assumam frontalmente a sua
identidade, que não a vendam, truculentas, frontais, que desmontem o postiço,
que não se enredem nos salamaleques do socialmente correto. Pela entrevista,
Beatriz da Conceição é tudo isto, uma espécie de modelo de personalidade em
extinção, implacável nos juízos sobre os outros, de linguagem viperina, cáustica,
autenticidade plena.
Não sou propriamente um entusiasta do fado, nunca me
consegui desligar mentalmente da sua associação ao conservadorismo do antigo
regime, mas tenho sido sensível à emergência (muito pós morte de Amália) de uma
certa autenticidade de nomes. Muito na linha de Eduardo Prado Coelho tocou-me
bastante a emergência de uma personalidade como Aldina Duarte, talvez a
primeira a libertar-se do anátema da ligação do fado ao antigo regime e a
transmitir uma força de convicções que nunca suspeitara poder existir no mundo
do fado. Os discos de Aldina são hoje devoção e a sua denúncia das condições de
classe que marcaram a sua infância e adolescência são para mim um documento
sociológico de valor testemunhal incomensurável.
Repito, a entrevista é notável. A adolescência no Porto e
o primeiro filho aos 18 anos e a ida para Lisboa são neo-realismo puro. O
testemunho sobre o mundo boémio, do jogo, os comentários e os juízos sobre Amália,
Natália Correia e todo o mundo que gira em torno das casas de fado lisboetas,
tudo isto no jeito truculento da linguagem da Tia Bia são uma peça jornalista
de grande fôlego e sobretudo de uma autenticidade que dói. As suas palavras
sobre personalidades como Camané, Ana Moura, Carminho, Marisa e Cristina Branco
e o diferente tom afetivo como as profere são um documento notável para
perceber o novo mundo emergente do fado. Vejam o exemplo sobre a Marisa: “A
gaja tem tudo marcado no papel como deve fazer. Aqui é altura de chorar.
Acreditas? Fogo!”. Na mouche, como te percebemos Tia Bia.
Estranhamente, tinha a ideia de que a Aldina Duarte também
circulava nas relações de Beatriz da Conceição. Pelos vistos terei construído
essa ficção. Na entrevista, é praticamente o único nome da nova onda que não
aparece.
Foi/ é a entrevista do ano!
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