quinta-feira, 26 de julho de 2012

HONRA AO PENSAMENTO



O alemão Jürgen Habermas, 83 anos, será talvez o mais importante intelectual europeu dos nossos dias. Dele foi recentemente publicado pelas Edições 70, com um magnífico prefácio de Gomes Canotilho, “Um Ensaio sobre a Constituição da Europa”. Um trabalho simplesmente magistral e que entronca à perfeição em muitas das interrogações e preocupações que têm atravessado este espaço.

Não pretendo fazer aqui mais do que uma chamada de atenção guiada para a notável reflexão do autor sobre a Europa da sua inquietação e a cosmopolitização política da sociedade mundial. Tentar ir mais longe seria, aliás, tarefa vã, tal é a espessura do pensador e do pensamento.

Justificando a sua abordagem, Habermas critica a restrição do debate atual “às saídas imediatas da atual crise bancária, monetária e da dívida, perdendo de vista a dimensão política” e sustenta que “conceitos políticos incorretos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática”. O que o leva, no primeiro caso, a referências como a da falta de competências da União Europeia para a necessária harmonização das economias nacionais, do Governo alemão como “acelerador de uma perda de solidariedade a nível europeu”, de um “incrementalismo desnorteado”, de um desequilíbrio entre os imperativos dos mercados e a força reguladora da política ou de um “federalismo executivo especial”. E, no segundo, à ideia de uma “transnacionalização da soberania dos povos na forma de uma confederação de Estados nacionais”.

O desenvolvimento subsequente começa por um “há muito que a densa rede de organizações supranacionais suscita o receio de uma possível destruição do nexo, garantido no Estado nacional, entre os direitos fundamentais e a democracia, assim como de uma expropriação das entidades soberanas democráticas por poderes executivos que se tornaram independentes a nível mundial”. Expõe, então, o que designa por duas inovações.

A primeira: “A União Europeia, no exercício das suas competências legisladoras e jurisdicionais, vincula os Estados-membros enquanto órgãos executivos, sem dispor dos poderes sancionatórios dos mesmos. E os detentores estatais do monopólio da violência admitem estar ao serviço da execução do direito europeu, que tem de ser ‘implementado’ a nível nacional.” Mais adiante explicita ainda que “a União Europeia constitui o resultado da formação de uma comunidade que possui autoridade para legislar de forma vinculativa em relação aos Estados-membros, sem cobertura de um poder estatal congruente”.

A segunda: “Enquanto os Estados-membros preservarem o monopólio da violência e transferirem direitos de soberania para a União, através da atribuição de competências, a componente organizacional na qual ela se pode apoiar é relativamente fraca”. O que vai bater na questão essencial da divisão do poder constituinte entre “membros de um povo europeu” e “cidadãos da União”.

Sublinhando de seguida o caráter equívoco da expressão “soberania partilhada”, Habermas prossegue explicitando que os Estados nacionais “não são apenas atores no longo caminho histórico para a civilização do núcleo de poder do domínio político” mas “também são conquistas permanentes e formas vivas de uma ‘justiça que existe’ (Hegel). Por isso, os cidadãos da União podem ter um interesse legítimo em que o seu Estado nacional continue a desempenhar o papel comprovado de garante do direito e da liberdade, mesmo quando assume o papel de Estado-membro. Os Estados nacionais são mais do que a mera materialização de culturas nacionais dignas de preservação; eles garantem um nível de justiça e liberdade que os cidadãos desejam, com toda a razão, ver preservado.” E, mais adiante: “foi precisamente por causa desta garantia de boa execução que os membros dos povos europeus quiseram partilhar o poder constituinte com os cidadãos da União, em vez de assumirem totalmente o papel dos cidadãos da União.”

O texto explora ainda a perspetiva de uma “hesitação das elites políticas no limiar da democracia transnacional”. Salientando, designadamente, que “quando uma comunidade constitucional se alarga para lá do núcleo organizativo de um Estado individual, é imediatamente necessário que o terceiro componente – a solidariedade dos cidadãos que estão dispostos a responsabilizar-se uns por outros – acompanhe o alargamento”. E ainda: “O facto de a União Europeia ter sido, até agora, essencialmente sustentada e monopolizada pelas elites políticas gerou uma assimetria perigosa entre a participação democrática dos povos naquilo que os seus governos ‘conquistam’ para eles no palco de Bruxelas – que consideram muito longínquo – e a indiferença, se não mesmo o desinteresse dos cidadãos da União no que diz respeito às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo”. Concluindo que “é necessária uma coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e a riqueza cultural incomparável do biótipo ‘velha Europa’ possam ser, sequer, protegidas do nivelamento, no seio de uma globalização que avança rapidamente”.

Quando, no final de tão transbordante leitura, voltei à dura realidade, vi-me a voltar também à pergunta frequente com que Habermas inicia o seu ensaio: “por que razão haveremos de insistir, sequer, na existência da União Europeia ou até no velho objetivo de uma ‘união política cada vez mais estreita’, uma vez que o motivo inicial de tornar impossível as guerras na Europa se teria esgotado”? É que esta é, para mal de todos nós, a vulgaridade que provavelmente vingará…

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