O alemão Jürgen Habermas, 83 anos, será talvez o mais importante intelectual europeu dos nossos dias. Dele foi recentemente publicado pelas Edições 70, com um magnífico prefácio de Gomes Canotilho, “Um Ensaio sobre a Constituição da Europa”. Um trabalho simplesmente magistral e que entronca à perfeição em muitas das interrogações e preocupações que têm atravessado este espaço.
Não pretendo fazer aqui mais do que uma chamada de atenção guiada para
a notável reflexão do autor sobre a Europa da sua inquietação e a cosmopolitização
política da sociedade mundial. Tentar ir mais longe seria, aliás, tarefa vã,
tal é a espessura do pensador e do pensamento.
Justificando a sua abordagem, Habermas critica a restrição do
debate atual “às saídas imediatas da atual crise bancária, monetária e da
dívida, perdendo de vista a dimensão política” e sustenta que “conceitos
políticos incorretos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática”.
O que o leva, no primeiro caso, a referências como a da falta de competências
da União Europeia para a necessária harmonização das economias nacionais, do
Governo alemão como “acelerador de uma perda de solidariedade a nível europeu”,
de um “incrementalismo desnorteado”, de um desequilíbrio entre os imperativos
dos mercados e a força reguladora da política ou de um “federalismo executivo
especial”. E, no segundo, à ideia de uma “transnacionalização da soberania dos
povos na forma de uma confederação de Estados nacionais”.
O desenvolvimento subsequente começa por um “há muito que a densa
rede de organizações supranacionais suscita o receio de uma possível destruição
do nexo, garantido no Estado nacional, entre os direitos fundamentais e a
democracia, assim como de uma expropriação das entidades soberanas democráticas
por poderes executivos que se tornaram independentes a nível mundial”. Expõe,
então, o que designa por duas inovações.
A primeira: “A União Europeia, no exercício das suas competências
legisladoras e jurisdicionais, vincula os Estados-membros enquanto órgãos
executivos, sem dispor dos poderes sancionatórios dos mesmos. E os detentores
estatais do monopólio da violência admitem estar ao serviço da execução do
direito europeu, que tem de ser ‘implementado’ a nível nacional.” Mais adiante
explicita ainda que “a União Europeia constitui o resultado da formação de uma
comunidade que possui autoridade para legislar de forma vinculativa em relação
aos Estados-membros, sem cobertura de um poder estatal congruente”.
A segunda: “Enquanto os Estados-membros preservarem o monopólio da
violência e transferirem direitos de soberania para a União, através da
atribuição de competências, a componente organizacional na qual ela se pode
apoiar é relativamente fraca”. O que vai bater na questão essencial da divisão do
poder constituinte entre “membros de um povo europeu” e “cidadãos da União”.
Sublinhando de seguida o caráter equívoco da expressão “soberania
partilhada”, Habermas prossegue explicitando que os Estados nacionais “não são
apenas atores no longo caminho histórico para a civilização do núcleo de poder
do domínio político” mas “também são conquistas permanentes e formas vivas de uma ‘justiça que existe’ (Hegel). Por
isso, os cidadãos da União podem ter um interesse legítimo em que o seu Estado
nacional continue a desempenhar o
papel comprovado de garante do direito e
da liberdade, mesmo quando assume o papel de Estado-membro. Os Estados
nacionais são mais do que a mera materialização de culturas nacionais dignas de
preservação; eles garantem um nível
de justiça e liberdade que os cidadãos desejam, com toda a razão, ver
preservado.” E, mais adiante: “foi precisamente por causa desta garantia de boa
execução que os membros dos povos europeus só
quiseram partilhar o poder
constituinte com os cidadãos da União, em vez de assumirem totalmente o papel dos cidadãos da União.”
O texto explora ainda a perspetiva de uma “hesitação das elites
políticas no limiar da democracia transnacional”. Salientando, designadamente,
que “quando uma comunidade constitucional se alarga para lá do núcleo
organizativo de um Estado individual, é imediatamente necessário que o terceiro
componente – a solidariedade dos cidadãos que estão dispostos a
responsabilizar-se uns por outros – acompanhe o alargamento”. E ainda: “O facto
de a União Europeia ter sido, até agora, essencialmente sustentada e
monopolizada pelas elites políticas gerou uma assimetria perigosa entre a
participação democrática dos povos
naquilo que os seus governos ‘conquistam’ para eles no palco de Bruxelas – que consideram
muito longínquo – e a indiferença, se não mesmo o desinteresse dos cidadãos da União no que diz respeito às
decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo”. Concluindo que “é necessária uma
coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e
a riqueza cultural incomparável do biótipo ‘velha Europa’ possam ser, sequer,
protegidas do nivelamento, no seio de uma globalização que avança rapidamente”.
Quando, no final de tão transbordante leitura, voltei à dura
realidade, vi-me a voltar também à pergunta frequente com que Habermas inicia o
seu ensaio: “por que razão haveremos de insistir, sequer, na existência da
União Europeia ou até no velho objetivo de uma ‘união política cada vez mais
estreita’, uma vez que o motivo inicial de tornar impossível as guerras na
Europa se teria esgotado”? É que esta é, para mal de todos nós, a vulgaridade
que provavelmente vingará…
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