(Um post para arrumar pensamentos e acalmar
fúrias)
A trama das negociações entre o governo grego de Tsipras e os seus credores
internacionais sob a supervisão não equidistante das autoridades europeias e do
FMI tem-se desenvolvido a uma velocidade vertiginosa, acontecendo algo de
similar ao que por vezes ocorre quando num livro ou num filme perdemos
momentaneamente o sentido da trama que estava em desenvolvimento. Os LIVE
BLOGS, por exemplo o do Financial Times e também agora o do Observador, ajudam
a compreender a vertigem da negociação. Para mais, numa negociação em que não
existe confiança entre as partes, é difícil frequentemente perceber se o que
vai aparecendo na comunicação social em matéria de propostas e contrapropostas corresponde
a decisões racionais focadas no avanço das negociações ou se são simplesmente
ideias que se lançam para a mesa para compreender melhor o racional da outra
parte, obrigando-a a clarificar argumentos e a revelar reais intenções.
Vertigem significa frequentemente náusea e de facto torna-se difícil seguir
todo este processo sem a estranha sensação de impotência e incomodidade do cidadão
comum face às consequências nefastas de cenários que podem naturalmente
concretizar-se.
Em primeiro lugar, é cada vez mais claro para mim que existe uma complexa
imbricação entre dois problemas estruturais: a insuficiência estrutural do
edifício do Euro e o problema estrutural da Grécia em assegurar a sua
sustentabilidade competitiva no âmbito da integração europeia e da zona euro. A
imbricação é clara: o problema grego coloca a nu as fragilidades do edifício do
Euro e a insuficiência estrutural deste último ajuda a complicar o que já de
per si seria complicado.
De facto, é cada vez hoje mais claro que o regime do Euro agrava
desigualdades existentes, amplificando excedentes e défices comerciais externos
de, respetivamente, países mais robustos e competitivos e de países menos
robustos e competitivos. E é também claro que os protagonistas mais fortes do
regime e que tendem a desenvolver excedentes comerciais externos não estão
preparados e não prepararam os seus eleitorados internos para a evidência de
que não podem indefinidamente manter excedentes comerciais. Ou seja, não estão
preparados para reflacionar as suas economias e episodicamente desenvolver
défices públicos internos para que os menos robustos possam recuperar alguma
competitividade no seio da moeda única, não sendo obrigados à penosidade da
chamada desvalorização interna introduzida pelas políticas de austeridade
generalizada. Ou seja, o edifício do Euro continua a não dispor de um mecanismo
global interno que permita atalhar as crises de balança de pagamentos que o
regime do próprio Euro está a provocar nos menos robustos e competitivos.
Por sua vez, o modelo económico grego é caracterizado por uma dependência
dinâmica que o crescimento económico tem do consumo privado (e não do consumo
público como visões distorcidas do problema grego têm vindo a alimentar), não
sendo o aparelho produtivo grego capaz de assegurar um maior peso de
exportações no PIB, mantendo-se muito limitado às receitas do turismo como
modalidade de “exportação de serviços”. É ainda caracterizado por uma
fiscalidade que protege a captura de rendas e pela significativa presença de
atores económicos relevantes situados fora do raio de punção fiscal do Estado.
Numa economia que depende dinamicamente do consumo privado para crescer e longe
do poder de extroversão que uma Irlanda e um mais incipiente Portugal
apresentam, não é necessário ter passado pelos manuais de macroeconomia para
perceber que um ajustamento por via da austeridade teria de destruir
significativamente produto. Como seria antecipável, mais de um quarto de
produto anual foi destruído e pergunta-se naturalmente como é que numa situação
deste tipo os credores internacionais ficarão mais protegidos e mais seguros de
que receberão o dinheiro anteriormente emprestado?
Como sublinhámos no nosso último post, se tivermos em conta os saldos
orçamentais sem o pagamento de juros de dívida e neutralizarmos o efeito do
ciclo económico (neste caso da recessão da economia grega) sobre as receitas e
despesas do Estado, a Grécia é o país da zona Euro que apresenta melhores
resultados, ou seja, não podemos afirmar que os gregos sejam em termos de
contas públicas uns desbaratinados. Karl Whelan mostrou ainda que os gregos têm
feito apreciáveis progressos no ajustamento do sistema de pensões, embora não
na modalidade de cortes que não constitui uma reforma de sistema mas tão só
corte de despesa.
Quer isto significar que as negociações entre credores e governo grego
acontecem sem se vislumbrar qualquer solução duradoura para o problema
estrutural da zona Euro, bem como o governo grego é atirado por esses mesmos
credores para decisões pontuais que não asseguram que o bloqueio estrutural da competitividade
do modelo económico grego esteja a ser tido em conta. É por isso uma negociação
que tem estritamente em conta os interesses de curto prazo dos credores e isto
mostra o estado lastimável a que o projeto europeu foi conduzido.
A leitura do documento que não tem ainda o acordo do governo grego que foi
presente à reunião já iniciada do Eurogrupo mostra algumas aproximações entre
as partes (ver aqui artigo de Peter Spiegel no Financial Times e aqui texto em apreciação).
Está por exemplo estabilizada a ideia de um IVA com três taxas, 23% (estendida à
restauração tal como cá, o que mostra que a cartilha é a mesma), 13% e 6%,
sendo esta última taxa aplicada produtos farmacêuticos, livros e teatro,
fixando-se o IVA para a energia em 13%. Está também consagrada o aumento da
idade de reforma para os 67 anos já em 2022, antecipando a data de 2036
proposta pelo governo grego. Os credores não aceitaram a proposta grega de um
imposto sobre os lucros das sociedades superiores a 500.000 euros, embora
tenham aceite uma subida do IRC de 26 para 28%, bem como rejeitaram as isenções
de IVA para as ilhas gregas.
Face aos problemas do euro que não estão a ser contemplados e tendo em
conta que a aproximação ao bloqueio estrutural do modelo económico grego também
está a ser adiada, chega-se rapidamente à conclusão de que as questões em jogo
no acordo com os credores são “peanuts”
face à dimensão estrutural dos problemas que estão a ser escamoteados. Tudo
isto padece pois da mais refinada hipocrisia.
No meio de tanto ruído, vale a pena ler o artigo de Lawrence Summers no Financial Times, no qual para além de alertar para os perigos insondáveis de
uma rotura grega, Summers envia um recado sensato ao FMI e aos líderes
europeus:
“O FMI tem de reconhecer que agora não se trata de números.
É alta política europeia que está em jogo. O seu papel deverá ser o de apoiar
qualquer acordo que evite a rotura. A hora é tardia. Mas frequentemente está
escuro antes de amanhecer. Esperemos todos que a Grécia e a Alemanha usem este
fim de semana para trabalhar profundamente sobre o assunto antes da cimeira de
segunda feira.”
Não tenho a certeza que o apelo de Summers tenha sido ouvido. Mas o mais
chocante é que apesar do acordo possível nada nos garante que, sem os dois
problemas estruturais e de fundo estarem resolvidos, não tenhamos a curto prazo
novos riscos de rotura.
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