domingo, 7 de junho de 2015

A MOEDA ÚNICA DISCUTIDA EM PARIS



Acima, as principais caras a que fico a dever aquele que terá certamente sido o debate económico-político (ou político-económico) mais rico e estimulante a que me foi dado assistir desde há largo tempo. Concebido e operacionalizado pela chefe de delegação francesa ao Parlamento Europeu, Pervenche Berès, no quadro de uma organização conjunta da Fondation Jean Jaurès e da FEPS (Foundation for European Progressive Studies) levada a cabo em Paris num espaço do edifício Chaban Delmas da Assembleia Nacional, o dito propunha-se abordar a estafada mas inesgotável temática da União Económica e Monetária nesta nossa Europa dos dias de hoje. Mas seriamente, sublinhe-se. Convidados doze “macacos” (passe o plebeísmo) para se sentarem do lado de lá de uma longa mesa, entre economistas, académicos e políticos comprovadamente conhecedores da matéria, convocada a presença do ministro Michel Sapin, desafiado um jornalista sabedor e enérgico para moderar (Jean Quatremer), combinado que seria sempre a dar-lhe sem interrupção até ao fixado deadline das dezanove horas para encerramento formal (pelos presidentes dos parlamentos francês e europeu), allez hop, on y va pela tarde fora...

O mérito esteve, desde logo, na estrutura definida para a discussão, a saber: duas grandes partes, uma voltada para o médio e longo prazo (“O Ideal e o Horizonte: o que queremos construir?”) e outra mais dirigida ao curto prazo (“O Real e o Possível: o que podemos fazer agora?”). Outro mérito esteve, também, na informalidade e no desassombro assumidos pela maioria dos intervenientes, ministro incluído. Mas o principal mérito esteve, obviamente, na qualidade dos participantes, entre os quais se contavam os seguintes seis reputados especialistas: a presidente-delegada do Comité d'Analyses Économiques (CAE) e ex-diretora do CEPII, Agnès Bénassy-Quéré: dois investigadores do Bruegel, André Sapir e Benedicta Marzinotto; o diretor do Instituto Jacques Delors de Berlim, Henrik Enderlein; o comissário-geral de France Stratégie, Jean Pisani-Ferry; e o presidente do Observatoire Français des Conjonctures Économiques (OFCE), Xavier Ragot.

A pairar sobre a mesma esteve a questão de uma eventual revisão dos Tratados e, sobretudo, o que poderá/poderia vir a passar-se no Conselho Europeu do final do mês e a ideia de que nele haja/houvesse algum debate em torno dos documentos de estratégia europeia solicitados aos diferentes governos e do trabalho que vem sendo desenvolvido pelos “cinco presidentes” (os do Conselho, da Comissão, do Banco Central Europeu, do Eurogrupo e, pela primeira vez, o do Parlamento Europeu) – ainda se lembram daquele inofensivo relatório de 2012 (“Towards a genuine economic and monetary union”) que ficou ligado ao nome do presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, mas foi de facto subscrito pelos então considerados relevantes “quatro presidentes” (Van Rompuy, Barroso, Draghi e Juncker, respetivamente)?


Dez referências avulsas e curiosas que inventariei, entre outras possíveis, para efeitos de partilha e reflexão: (i) a afirmação de que o “monstro” ad hoc que foi a Troika nasceu de uma falta de confiança dos principais países na Comissão Europeia; (ii) as ideias fortes de que “a França entrou no Euro como um sonâmbulo” e de que a política monetária da Zona Euro é, acima de tudo, favorável à França; (iii) a recusa do conceito vazio de “reformas estruturais”; (iv) a interrogação eventualmente pertinente sobre o que teria sido a crise se não existisse o Euro; (v) o “obstáculo cognitivo” associado a uma “Alemanha capturada por uma leitura errada da crise da Zona Euro”; (vi) a chamada de atenção para o facto de que certas hesitações alemãs decorrem de projeções demográficas como as que referem que o país perderá 20% da sua força de trabalho até 2060; (vii) a Europa encarada como “um grande país que se ignora”; (viii) a soberania e a defesa de um “federalismo por exceção”; (ix) o paradoxo da atual “paralisia política”, traduzido numa incapacidade de ação coletiva mesmo quando são inequívocas certas posições individuais em sentidos convergentes; (x) a expressão da dúvida fundamental sobre se a “família socialista” – “calada desde Delors” – conseguirá vir a encontrar uma qualquer via justa “entre o método grego e o do presidente francês”.

Junto ainda algumas linhas orientadoras ou propostas, igualmente em número de dez, que foram sendo aventadas com maior ou menor grau de detalhe ao longo daquela tarde: (i) colocar a convergência dos mercados de trabalho no coração de um relançamento da construção europeia capaz de viabilizar a moeda única; (ii) contornar a total intergovernamentalidade que marca o presente Mecanismo Europeu de Estabilidade; (iii) criar um pilar orçamental europeu gerido em termos semelhantes ao pilar monetário (conselho de governadores do BCE); (iv) encontrar um ou dois temas europeus susceptíveis de granjear adesão popular com vista a um necessário combate comum imediato; (v) reformar o Semestre Europeu e o diálogo monetário; (vi) assumir que as respostas essenciais têm de provir do foro institucional e de uma lógica mais assente nos 28 Estados membros do que na Zona Euro; (vii) ter em conta que a atual União Europeia já tem um orçamento e que este talvez possa ser melhor utilizado; (viii) completar a União Bancária com o terceiro e ainda ausente pilar da garantia comum de depósitos; (ix) fazer voltar à agenda modalidades de gestão articulada da dívida dos Estados; (x) pugnar por um prioritário regresso aos valores (cidadania europeia e mínimos de direitos sociais) e ao “interesse europeu”, o que alguém explicitou como devendo traduzir-se pela revalorização de “três presidentes” (Comissão, Conselho e Parlamento) em detrimento de quatro ou cinco (o BCE e o Eurogrupo relevam obviamente de outro(s) campeonato(s), necessariamente menos abrangentes em termos políticos e mais focados).

Uma nota final sobre o ministro das Finanças. Na sua intervenção de fundo leu, algo originalmente, a crise da moeda única como resultando do seu próprio sucesso (que foi ao ponto, disse, de a dada altura todos apenas estarmos a olhar para as taxas de juro e respetiva convergência em baixa). Defendeu também que, independentemente de revermos os tratados, temos muito terreno para avanços imediatos contra o imobilismo e deu exemplos como os da implementação em curso de análises globais centradas na perspetiva europeia anteriormente às nacionais (em que estaria realmente a pensar?), da União Bancária (“a seguir ao Euro, a maior reforma dos últimos 25 anos”) e da fiscalidade (combate às concorrências fiscais agressivas e anormais e harmonização do cálculo da base dos impostos). Mas o ponto mais esclarecedor terá estado naquele momento em que afirmou que “queremos uma Europa federal, logo não intergovernamental, logo da Comissão” mas que, num período em que Europa está ainda em crise, o intergovernamentalismo não pode deixar de ser um elemento decisivo – eis a estratégia de Hollande em todo o seu esplendor, colando aos alemães e logrando concessões nacionais por isso mas prescindindo das promessas feitas e das responsabilidades históricas e políticas assumidas; o que o moderador sumariou criticamente nos termos de um irrebatível desabafo: rien est à nous, rien est urgent...

(Sergio Aquindo, http://lemonde.fr)

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