(Um pouco técnico: ou como o conceito de Mathiness introduzido por Paul Romer
revolucionou o debate de ideias e paradigmas na macroeconomia)
Já há alguns dias que ando às voltas com a ideia de escrever um post sobre
esta matéria, embora se trate de questões que ficariam melhor alinhadas num
blogue centrado nas questões da “ciência” económica, o que o Interesse Privado,
Ação Pública efetivamente não é, a não ser nas margens de relacionamento com o
tema público-privado.
Oportunamente, dei aqui conta várias vezes do ressurgimento público de um
economista cuja obra a equipa de crescimento económico da FEP em que estava
integrado ajudou a divulgar em Portugal, sobretudo no que a economia das ideias
representava de futuro para a teoria do crescimento económico. Depois de um
interregno público em que Paul Romer se concentrou em negócios privados de
tecnologias educativas, percorreu o mundo, sobretudo o asiático, com a sua
ideia de projeto das Charter Cities
e ter acostado a um instituto de estudos urbanos da Universidade de Nova Iorque,
o Marron Institute of Urban Management, em que
é responsável pelo Urbanization Project na Leonard N. Stern
School of Business, em janeiro de 2015 o economista regressou ao
encontro nacional da American
Economic Association com um pequeno paper que haveria de marcar
o debate essencialmente macroeconómico este ano. O paper chamava-se “Mathiness in the Theory of Economic Growth”
e, com a sua publicação, Romer iniciou uma atividade regular no seu blogue,
rapidamente agitando a riquíssima blogosfera americana, envolvendo os bloggers de maior reputação e audiência,
Bradford DeLong, Paul Krugman, Robert Waldmann (Angry
Bear e Asymptotically
we are all dead), Mark Thomas (Economist’s
View), David Glassner (Uneasy Money)
e outros
O conceito de mathiness é de difícil
tradução para português, talvez “matematite” ou “matematicidade” possam
encontrar no português inventivo algo que reproduza o sentido da expressão de
Romer que, devemo-lo recordar, é um daqueles economistas que sustenta que sem o
recurso à matemática a economia não pode aspirar ao estatuto da ciência. A
matemática é a via mais sólida para comunicar com clareza, concisão e
efetividade ideias. O que torna mais estranho a utilização de uma expressão que
parece gozar com o uso indevido da matemática. O que leva então um economista
matemático, de sólida formação em engenharia, a regressar ao palco do debate público,
atirando-se inicialmente a dois modelos de crescimento (McGrattan e Prescott e
Lucas e Moll) pelo seu uso indevido da matemática e da modelização? A “mathiness” é para Romer uma mistura de
palavras e de símbolos matemáticos que, em vez de conduzir a relações bem
determinadas e inequívocas, abre um vasto campo à derrapagem das ideias e
inclusivamente à desonestidade intelectual.
Para além dos sucessivos posts no seu blogue em que a ideia foi
desenvolvida, aliás em debate franco e polido com alguns dos bloggers atrás
mencionados, Romer concedeu recentemente uma curta entrevista ao Real Time Economics do Wall Street Journal no qual apresenta os fundamentos para a decisão
de aparecer em força na conferência anual da American
Economic Association: “uma das coisas
que mais me impressionou foi a perceção do reduzido progresso observado em
relação às mais importantes questões da economia das ideias”. Partindo
desta simples observação, Romer conclui que do ponto de vista científico algo
de errado se tinha passado e talvez houvesse razões objetivas para que o
progresso científico não tivesse sido estimulado. É aqui que vai buscar a
utilização indevida da matemática e o campo aberto à desonestidade intelectual
que impediu a consolidação do pioneirismo das ideias de Romer de que a economia
das ideias obriga a uma modelização da concorrência imperfeita (monopólio, concorrência
monopolista ou oligopólio) e não à tentativa desesperada de Robert Lucas
(curiosamente supervisor da tese de doutoramento de Romer na universidade de
Chicago) de desenvolver a economia das ideias como uma subárea do capital
humano modelizável em concorrência perfeita.
Para sustentar a sua posição de que a matemática tem aberto campo à
desonestidade intelectual em economia, Romer precisava de se munir de critérios
de integridade científica para ficar ileso em tão violenta batalha. Fazendo jus
às origens da sua própria formação, Romer vai buscar ao físico Richard P. Feynman
(não confundir com Richard Feynman) o conceito de integridade científica. Recordo
que Feynman é autor de um dos mais violentos ataques à pseudo-cientificidade das ciências sociais: “Devido ao sucesso
da ciência, há um tipo de pseudo-ciência. A ciência social é um exemplo de ciência
que não é ciência. Ela segue as formas. Recolhe dados, faz aquilo e aqueloutro, mas não obtém leis, não descobriu
nada. Não conseguiram nada ainda. Pode ser que algum dia encontrem alguma
coisa. Mas ainda não está muito desenvolvida”
(entrevista à BBC de 1981). Vale a pena citar o conceito de integridade científica de Feynman que tanto
orienta a contundente crítica de Romer:
“É um
princípio de integridade científica, um princípio de pensamento científico que
corresponde a um tipo de honestidade absoluta – um tipo de respeito pelo que
está a montante das nossas conclusões. Por exemplo, se realizarmos uma dada
experiência, devemos reportar tudo que em nosso entender pode tornar essa
experiência não válida –não apenas o que pensamos que está certo nessa experiência.:
outras causas que podem explicar os resultados; e coisas que pensamos ter
eliminado através de outras experiências e como é que aconteceram – de modo a
tornar seguro que outros possam confirmar que foram eliminadas.
Pormenores
que possam suscitar dúvidas sobre a nossa interpretação devem ser fornecidos,
se os conhecermos. Devemos fazer o melhor que pudermos – se conhecermos alguma
coisa de errado ou possivelmente errado para o explicar. Se elaborarmos uma
teoria, por exemplo e a aconselharmos então devemos colocar na mesa todos os
factos que a contrariam, tais como aqueles que a podem infirmar. Há ainda um
problema mais subtil. Quando se reúnem muitas ideias para poder elaborar uma
teoria, devemos estar seguros, quando explicamos o que é que a teoria explica,
que essas coisas que confirmam a teoria não são apenas as coisas que nos
conduziram à ideia da teoria; mas que essa teoria acabada traz alguma coisa de
adicional de verdadeiro”.
.
Romer está sobretudo preocupado pelo facto da economia ter implicações
diretas na política macroeconómica (policy)
e isso poder inibir a possibilidade de um debate científico não apaixonado, de
espírito aberto, sobretudo num contexto em que as posições políticas se
extremaram não apenas nos EUA, mas também por toda a Europa em função da
conflitualidade que a gestão da crise veio introduzir no plano político e no
plano das ideias económicas. Ele entende que o facto de certas ideias económicas
serem o suporte de posições políticas bem sólidas e impenetráveis está a
arruinar a capacidade dos jovens investigadores de questionar os paradigmas
representados pelos seus supervisores de investigação, sobretudo se estes últimos
não respeitarem os princípios da integridade científica de Feynman e se aqueles
não tiverem a rebeldia necessária para preferirem a incomodidade à cautela, a
rebeldia ao seguidismo.
E as ideias são como as cerejas. Por isso, Romer suscitou indiretamente o
revisitar da grande cisão observada na macroeconomia contemporânea quando a
macroeconomia keynesiana foi desafiada pelos chamados Novos Clássicos, cujo
manifesto “After Keynesian Macroeconomics”
de 1989 (Robert Lucas Jr. E Thomas Sargent) procurava demonstrar no quadro das
chamadas expectativas racionais a dispensabilidade da política de intervenção
keynesiana. Esta cisão que é conhecida na gíria pela divisão de águas entre a “freshwater e a saltwater economics” teve
no seu seio economistas tão representativos como Robert Solow que sempre se opôs
à pretenda utilidade do conceito de expectativas racionais.
Não há espaço neste post para analisar de perto o que foi e o que poderia
ter sido a reação de Solow ao manifesto dos Novos Clássicos e consequentemente
a questão académica se a divisão de águas poderia ter sido evitada, com benefícios
óbvios para a progressão da ciência económica no quadro de um paradigma a
aprofundar em termos comuns.
Mas é bom que se diga que Romer é cientificamente íntegro ao considerar que
houve outros momentos, para além do manifesto de Lucas e Sargent, em que outras
trajetórias promissoras de pensamento económico tiveram o seu desenvolvimento
inibido devido às suas consequências sobre o paradigma de intervenção pública
que tenderiam a provocar. De acordo com os contributos do próprio Romer parece
ser essa a razão da tentativa desesperada de consagrar o desenvolvimento da
economia das ideias no âmbito de modelos de concorrência. Com essa tentativa,
procura-se desacreditar a intervenção pública anti-trust que na boa lógica de
Chamberlain as situações de monopólio, de concorrência monopolista e oligopólio
implicam, bem como os incentivos públicos à inovação.
E direi eu é o que se passa hoje com a defesa desesperada do paradigma da
consolidação fiscal e com ela a desvalorização absoluta de demonstrações sólidas
de que, em condições de zero lower bound
e perspetivas de declínio das taxas de juro a longo prazo, “debt is good”. A
consagração política do pacto orçamental na União Europeia, com o beneplácito
da social-democracia europeia, tenderá a assustar e a inibir jovens
investigadores de contrariar mestres e supervisores que alinham por essa posição.
David Glasner no Uneasy Money acrescenta uma posição na qual me revejo
bastante:
“A
minha própria perspetiva é que estar pessoal ou emocionalmente ligado a uma
dada teoria, seja por motivos religiosos, ideológicos ou por quaisquer outras
razões, não é necessariamente uma coisa má enquanto houver mecanismos sociais
que possibilitem que outros cientistas com outras perspetivas científicas sejam
escutados. Se esses mecanismos existirem, a necessidade da integridade científica
de Feynman será minimizada, já que os lapsos individuais de integridade serão
expostos e remediados pelo criticismo de outros cientistas; o progresso científico
é possível mesmo que os cientistas não adiram aos princípios de Feynman e
mantenham a sua fé nas suas teorias apesar das evidências contraditórias. Mas,
como sugerirei de seguida, há razões para duvidar que esses mecanismos estejam
a operar para disciplinar – não eliminar, apenas disciplinar, dúbias teorizações
económicas.”
Nem sempre de facto estão criadas as condições para que um estudante de
doutoramento descubra o bug de uma folha de EXCEL que concentrava a
pseudo-verdade de que existe um limiar de peso de dívida pública no PIB a
partir do qual a dívida é nociva ao crescimento económico.
É por estas razões que tenho algum desprezo e azedume intelectual pelos
professores que tive em disciplinas de teoria económica na Faculdade de
Economia do Porto. São responsáveis por anos de vida perdidos sobretudo a
trabalhar nas aberturas de pensamento que naquela Escola estavam fechadas. Creio
estar de consciência tranquila por ter proporcionado como professor aos meus
alunos um outro clima não dogmático de abertura intelectual. Já não é pouco nos
tempos que correm.
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