(Das patilhas de Felipe Gonzaléz ao rabo de
cavalo de Pablo Iglesias, ou a mordacidade implacável de Manuel Vicent))
A prosa mordaz e incisiva de Manuel Vicent, jornalista do El País, traz-me
sempre a segurança de um texto implacável, rosnando por vezes, mas sempre
direta ao tutano das coisas e justificando os minutos em que se deixa tudo para
trás para simplesmente fluir na crónica.
A crónica de última página do El País de hoje é um documento precioso para
compreender a situação política espanhola, da ascensão e talvez queda do
PODEMOS e sobretudo de Pablo Iglesias, seu líder por demais mediático e carismático.
“Se o apocalipse dá dinheiro, então para a frente com ele,
pensavam os gerifaltes (chefões) das televisões privadas, porque a liberdade de
expressão é muito mais sagrada quando faz engordar a conta de resultados”.
Basta esta breve citação para compreender a força da prosa de Vicent e neste
caso a chave da explicação para a ascensão meteórica de Pablo Iglesias. Imaginem
que uma personalidade qualquer antissistema partidário tinha emergido em
Portugal ao abrigo de uma televisão privada arrebatando primeiro audiências nas
tertúlias políticas e lançando depois um movimento político de denúncia do
logro e fracasso do sistema partidário, arrastando consigo os deserdados,
marginalizados, injustiçados e explorados que não se reviam nas propostas políticas
inclusivamente as provenientes de partidos de protesto como o PCP ou o Bloco. Teríamos
assim um Pablo Iglesias português, inexistente de acordo com a evidência política.
Vicent usa metaforicamente a evolução possível do ar tipo hippie dos anos
60, com aquele aspeto de índio apache misturado com um ar de profeta, para
descrever a transformação provável de alguém que capitaliza um protesto e um
vazio político de representação quando passa a ser influente, pelos votos
obtidos, na evolução da situação política até chegar a uma posição eventual de
poder, como é o caso de Tsipras na Grécia. E fá-lo com uma comparação
surpreendente (que a memória já não me permite recordar) com a evolução das
patilhas de Felipe González até à sua chegada a Moncloa.
Para lá da metáfora de Vicent, estamos aqui com uma matéria de grande
sugestão política. Como é que uma massa eleitoral de grande expressão inicial
(nas sondagens e posteriormente nas Europeias e na forma difusa como se
materializou enchendo algumas vitórias autárquicas de grande significado a nível
local) que Iglesias acabou por imprimir ao PODEMOS evoluirá à medida que esta
força política alimente ou não pactos de poder anti Partido Popular? Será que a
manutenção de uma retaguarda nesses pactos protegerá o PODEMOS da usura política?
Será que Pablo estará disposto a abdicar da sua auréola, da sua marca mediática
indiscutível, para se esvair no turbilhão desses pactos?
Face a estas evoluções metafóricas possíveis dos símbolos da rebeldia, das
camisas e trajos de cabedal de Varoufakis à trança de Iglesias passando pelas
patilhas recordadas de Felipe González e do que elas representam de mais
substancial, compreende-se o que custa aos líderes de protesto passarem a linha
vermelha da discussão das questões concretas da governação. Imaginem um
Francisco Louçã ministro de um governo de coligação de esquerda! Mas nem sequer
nestas matérias a situação política portuguesa tem algo de interessante. O
populismo rasteiro de Marinho Pinto é pouco. Temos de facto uma democracia com
fraca capacidade de se abanar e de regeneração endógena e exógena. E não teríamos
prosa como a de Manuel Vicent para zurzir nos seus tiques mais profundos. O que
seria um grande aborrecimento.
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