terça-feira, 4 de agosto de 2015

A SOMBRA DE KEYNES




(Neste caso não por via da incontornável política fiscal em ambiente de armadilha da liquidez)

Se não houvesse outra consequência da conflitualidade macroeconómica gerada pela incipiente recuperação do pós 2007-2008 em ambiente de taxas de juro quase nulas a maneira como o turbilhão de ideias associado a esse ambiente fez ressuscitar o pensamento de Keynes bastaria para compreendermos que algo mudou.

Do Keynes ignorado por muitos e precocemente atirado para o grupo das relíquias do pensamento económico ao Keynes revisitado, clarividente, combinando o rigor formal e a aguda perceção dos meandros mais recônditos da economia real e financeira, assistimos hoje a um ambiente intelectual bem mais vivo do que aquele que o mainstream neoclássico pincelado com o mundo das expectativas racionais tinha projetado.

E o que é mais estimulante é que o Keynes revisitado não é apenas o do quadro de pensamento da Teoria Geral, mas antes o Keynes intelectual de grande espectro. Estou, por exemplo, a visualizar na minha estante os Essays in Persuasion e a todo o momento se identificam revisitações sobre essa dimensão menos conhecida do seu pensamento. De repente, por exemplo, o modo como Keynes seguiu e escreveu sobre as negociações posteriores à 1ª Guerra Mundial e a sua participação nas discussões para uma nova ordem económica internacional no pós-segunda guerra mundial regressa ao universo das leituras cruciais para compreendermos e contextualizarmos historicamente os problemas de hoje.

Num curto espaço de dias, dois ilustres cronistas do Financial Times, TimHarford e John  Kay, assinam dois artigos em que a sombra desse Keynes está presente.

O primeiro discute uma das mais conhecidas profecias de Keynes que provavelmente nunca será realizada. Num célebre ensaio de 1930 sobre as possibilidades económicas dos netos de então, Keynes estimava que, em 2030, o bem-estar material dos ingleses seria 8 vezes superior ao que se vivia na altura e que nessa data as pessoas só necessitariam de trabalhar 15 horas por semana. Se não fora a agudização da desigualdade que as economias avançadas estão hoje a viver intensamente, o capitalismo teria condições de concretizar e superar de largo a primeira profecia de Keynes. Até às imediações dos anos 2000, o crescimento económico e a produtividade garantiram níveis de aumento exponencial do bem-estar material, em algumas situações infinitos, já que estamos a falar de produtos para os quais não existe rival no passado. Não só acedemos a bens de consumo melhores do que os nossos antepassados modernos puderam experimentar, como o fazemos necessitando de trabalhar menos horas de trabalho e menor salário para o conseguirmos.

Mas quanto à segunda profecia ela parece a 15 anos do teste definitivo (2030) estar longe de poder ser concretizada e interessará saber porquê. O capitalismo parece ter entrado numa perfeita esquizofrenia. Os que conseguem ter emprego e os melhores empregos trabalham como mulas (não se compreende bem por que razão) e o desemprego estrutural é hoje nas economias maduras significativo, a ponto de reeditar a velha questão do desemprego tecnológico, que outrora movimentava os sindicatos contra a ameaça da máquina e da destruição do emprego. Esta questão está hoje mais complexa porque progresso tecnológico e globalização se potenciam muitas vezes. E afinal, como Harford conclui o seu artigo, Keynes podia ser considerado um homem de posses e não parou de trabalhar até à sua morte.

O artigo de John Kay é muito subtil e centra-se na frequente incapacidade dos economistas em reconhecer que estão errados em função de evidência. Neste caso, a sombra de Keynes está presente através de uma afirmação que é regra geral atribuída a Keynes: “Quando os factos mudam, eu mudo de opinião e o senhor?”. Não está provado que tenha sido de facto Keynes a proferir essa bela frase e atribui-se a mesma ou variantes da mesma (com informação em vez de factos) a Paul Samuelson que também a atribui a Keynes. Poderão encontrar aqui (no Quote Investigator) uma boa resenha da discussão das origens de tão atual e pertinente frase.

Nos tempos que correm, há demasiados economistas a coligir dados e evidência não para testar a veracidade e consistência das suas posições mas mais para preservar a sua intocabilidade. Como diz Kay na parte final do seu artigo, a capacidade de intervir embora reconhecendo os limites do seu conhecimento é coisa essencial mas rara nos dias de hoje.

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