(Nos anos 80,
apresentei em Lisboa, numa conferência do CISEP sobre economia portuguesa, uma
comunicação sobre a degenerescência da base moral da economia, inspirada pela
leitura que então fizera da Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith. Não imaginaria que cerca de 30 anos depois
ela permanecesse tão atual)
“A disposição para admirar e quase adorar os ricos e os poderosos e desprezar
ou, pelo menos, negligenciar as pessoas pobres e de condição média, ainda que
necessária para manter a distinção entre lugares e a ordem da sociedade, é ao
mesmo tempo a grande e maior causa universal da corrupção dos nossos
sentimentos morais.”
Adam
Smith, The Theory of Moral Sentiments, parágrafo inicial do capítulo 3, p.126,
edição Liberty Classics, Indianapolis, 1969
Só de facto um maduro, não venezuelano, teria a pachorra
nos anos 80 de ler em inglês, The Theory
of Moral Sentiments, de Adam Smith. Foi uma tarefa difícil e estou certo
que não terei conseguido apreender toda a elegância do pensamento smithiano,
até porque na altura não tinha sido publicada nenhuma obra de referência interpretativa
dessa obra mais desconhecida do pai da mão invisível, como por exemplo, Economic Sentiments (2001, Harvard University Press) de
Emma Rothschild e a própria biografia Adam Smith – an enlightened life de Nicholas
Phillipson (2010, Allen Lane).
Nestes últimos 30 anos, a deterioração da base moral do
capitalismo tem sido galopante. Basta referir, por exemplo, o aparecimento da
palavra “greed” (ganância) no léxico
interpretativo dos acontecimentos devastadores de 2007-2008. Ou também
considerar os sucessivos atropelos em matéria de “corporate governance”, através dos quais um grupo vasto de CEO
decide em campo próprio e a seu próprio favor, já para não falar no conhecido
processo de aquisição de ações próprias das empresas, que William Lazonick tem
estudado aprofundadamente. Ou podemos ainda invocar a capacidade legal ou
ilegal de ocultação de rendimentos ao exercício da fiscalidade, reduzindo a
capacidade de arrecadação fiscal dos estados, que a recente problemática do
Panama Papers colocaram a nu nas últimas semanas e que economistas como Gabriel
Zucman têm estudado de forma minuciosa, denunciando a hipocrisia de gente que
se diz patriota dos quatro costados, mendiga sabe-se lá por que meios uma
subvenção ou uma isenção fiscal e subtrai declaradamente rendimento à chamada
punção fiscal dos poderes públicos.
No seio desta denúncia da base moral do capitalismo,
houve quem se aventurasse a considerar que tal degradação deveria ser cruzada
com a base cultural dos modelos de gestão e de corporate governance, insinuando que poderia haver sociedades mais
resistentes a tal degenerescência. Não incorro em falha maior se associar a
esta ideia a por vezes sublinhada afirmação de que a corporate governance de empresas japonesas poderia ilustrar essa
maior resistência à deterioração da base moral.
Pois parece que os fatores de corrompimento e
degenerescência dos valores morais do capitalismo são capazes de vencer essas
barreiras culturais. Foi assim com algum sorriso que li a notícia de hoje de
que também a Mitsubishi Motors assumiu ontem que viciou os testes de emissões,
enganando reguladores e consumidores. O Financial Times fornece elementos
valiosos para comparar as fraudes da Mitsubishi e da Volkswagen, que serão
certamente diferentes na trama e do alcance da fraude. Não é tanto a engenharia
da fraude que me interessa. O que importa registar é que tudo leva a crer que
estaremos a viver uma meta-degenerescência da base moral do capitalismo,
transversal a diferentes modelos culturais com influência nos modelos de corporate governance. Aliás se há coisa
curiosa nos últimos tempos da referida degenerescência é a aparente
convergência da relação norte-sul nestas matérias. Sim, os modelos a norte são
mais accountable. Mas o norte não tem
hoje nenhuma superioridade moral a apresentar ao sul. E a indústria automóvel é
uma boa ilustração da democratização da fraude. Aliás, a frequência dos
paraísos fiscais do Panamá é bem a imagem de um clube aberto e não com direito
reservado de admissão a determinadas ideologias.
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