quinta-feira, 21 de abril de 2016

O SALTO DO COELHO




(Breves notas sobre o programa RTP centrado em Amadeo de Souza-Cardoso, que entre outras coisas tornam mais apelativa e necessária a visita à exposição do Grand Palais, em Paris)

Se mandasse alguma coisa em coisas de educação cívica obrigaria certamente a que o filme Amadeo ontem passado na RTP 1 constituísse matéria obrigatória de visualização, discussão e formação para jovens portugueses necessitados de um rumo, designadamente o de decidir se devem permanecer ou sair do país.

Não é tanto o génio de Amadeo, que já me tinha enchido o ego na exposição da Gulbenkian de há alguns anos, que o filme transmite. A descoberta desse génio será inesgotável, à medida que provavelmente novas obras sejam descobertas e que novas interpretações sobre esse tesouro escondido se multipliquem. O que o filme traz de exemplar é a correta demonstração do que Amadeo teve de penar para dar ao seu génio as condições mais favoráveis à sua concretização, não esqueçamos apenas em 29 anos de vida (1918-1947). Primeiro, a perceção aos 19 anos de que as suas capacidades tinham de estar no meio fervilhante da criação (nessa altura Paris) para poderem desabrochar, interagir e impressionar o mundo. O que no seio de uma família altamente conservadora não deve ter sido fácil, dado o rompimento inevitável que essa perceção representaria. Segundo, a importância da sua extração social para compreender a aparentemente fácil adaptação aos meios parisienses. Terceiro e talvez o mais importante de todos, o espantoso investimento pessoal de Amadeo na disseminação do seu portfólio de desenhos, com o qual se fez anunciar praticamente a todo o mundo da arte mundial e assegurou a divulgação do seu traço e a sua inclassificável produção artística, que antecipou correntes. Este último aspeto é crucial para percebermos o que é a afirmação possível a partir da periferia e a convicção de que tem de ser conquistada, como o fez Amadeo.

A descoberta final junto da família de Souza-Cardoso em Amarante de uma colagem que o diretor científico do Grand Palais e Maria Helena Freitas anunciavam como uma antecipação do movimento pop fecha excelentemente o filme. Ouvir gente reputada e ilustre falar do êxito de Amadeo no Armory Show de Nova Iorque, ouvir também gente de Chicago afirmar que a passagem da exposição pela cidade marcou indelevelmente a política local no investimento na arte moderna, recordar frases de críticos prestigiados tudo isso nos comove até ao tutano, em torno de quem merecia ter vivido mais anos para nos transmitir a força da sua criatividade.

Dirão alguns que é trágica a nossa dependência das raras ilustrações de génios que tivemos. É verdade. Mas desconhecer essas raríssimas manifestações e não o utilizar como capital de confiança e orientação ainda é mais trágico. Mas é tão fácil fazer serviço público de qualidade.

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