domingo, 24 de abril de 2016

OS VINTE ANOS DA REVOLUÇÃO DE OUTUBRO


Ainda mal refeito de um fim de tarde musical pouco menos do que perfeito, ouvindo a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música (dirigida pelo seu maestro titular Baldur Brönnimann) e o Coro Casa da Música a interpretarem magistralmente a “Cantata para o 20º Aniversário da Revolução de Outubro” de Sergei Prokofieff, dispenso-me de escusadas considerações e reproduzo sem mais o excelentemente explicativo texto de João Silva que integrava o programa de sala:

“A música de Sergei Prokofieff ocupa um lugar importante no repertório das salas de concerto e dos teatros de ópera. Contudo, a Cantata para o 20º Aniversario da Revolução de Outubro enquadra‐se num estilo diferente. É uma obra de proporções monumentais, escrita entre 1936 e 1937. Nessa época, o compositor tinha regressado definitivamente à União Soviética, após um período na Europa e nos Estados Unidos da América. Prokofieff dedicou‐se à composição de uma cantata que representasse os acontecimentos da Revolução de Outubro de 1917, como uma espécie de apresentação ao público soviético. Contudo, nem tudo correu de feição. Por um lado, foi escrita durante a perseguição aos dirigentes soviéticos que permitiu a consolidação do poder de Estaline na década de 30, conhecida como A Grande Purga. Entre 1936 e 1938, muitas pessoas foram visadas, e a atmosfera persecutória permeava a sociedade soviética. Assim, uma obra sobre a Revolução de 1917 com textos de Lenine seria uma forma de resguardar Prokofieff e a sua família. Por outro lado, o centralismo burocrático soviético impediu a apresentação da obra sob pretexto de não se encontrar conforme à doutrina do regime. Prokofieff apresentou a obra ao Comité́ para os Assuntos Artísticos numa sessão realizada em Agosto de 1937. O parecer do Comité́, à época liderado por Platon Mikhailovitch Kerzhentsev (o possível autor da crítica do Pravda a Lady Macbeth), foi negativo. Assim, a estreia parcial da cantata deu‐se postumamente, a 5 de Abril de 1966. 

A obra foi escrita para um efetivo vocal e instrumental de grande escala: um coro profissional, um coro amador, uma grande orquestra sinfónica, um grupo de metais, um conjunto de acordeonistas e vários efeitos sonoros (incluindo sirenes e metralhadoras). Assim, criava‐se uma atmosfera de grandiosidade heróica compatível com os eventos de 1917. Dividida em três partes e em dez andamentos, a monumentalidade da Cantata para o 20º Aniversário da Revolução de Outubro é conseguida não só através dos grandes recursos vocais e instrumentais empregues, mas da heterogeneidade dos estilos utilizados. A primeira parte é a introdução e inclui quatro andamentos. Inicia‐se com um prelúdio tempestuoso, que marcará a atmosfera da obra e ao qual Prokofieff associou a primeira frase do Manifesto Comunista, panfleto escrito por Karl Marx e Friedrich Engels e publicado em 1848. No segundo andamento, Os Filósofos, o coro canta a Tese XI das Teses sobre Feuerbach, de Marx, antecipando o clima revolucionário russo. Segue‐se um interlúdio dramático e dissonante que prepara o andamento seguinte, baseado em textos que Lenine tinha escrito antes da Revolução.

A segunda parte, Revolução, é a mais longa e intensa da obra e recorre a textos de Lenine escritos nos primeiros tempos da Revolução de Outubro. A obra tenta recriar sonoramente a Revolução Bolchevique, e a criação e manipulação das massas corais é feita de forma a dar a ideia do colectivo revolucionário. As marchas são omnipresentes, adensando a textura e aumentando o volume sonoro. O sexto andamento da obra representa o combate, e entra na narrativa toda a parafernália de efeitos sonoros. À medida que os combates se dão, a obra torna‐se mais dramática. O sétimo andamento, Vitória, é lento e permite alguma distensão. Aqui, Prokofieff usa um efeito sonoro de passos, imitando uma marcha. A textura de marcha, neste caso solene, prossegue em O Juramento, andamento baseado no discurso proferido por Estaline na véspera do funeral de Lenine. Assim, Prokofieff apresenta uma espécie de passagem de testemunho entre os líderes. O nono andamento é instrumental, um interlúdio orquestral que remete para o universo das bandas sonoras. Neste caso, e tendo em conta a abordagem cronológica do compositor, pode querer recriar o ritmo da industrialização soviética sob a liderança de Estaline. A cantata termina com um andamento cujo texto provém do discurso de Estaline ao Oitavo Congresso Extraordinário dos Sovietes, realizado em Novembro de 1936. Nesse congresso foi aprovada a Constituição de 1936, que transformou o sistema político soviético e reforçou indiretamente os poderes do Chefe de Estado. Passagens modernistas influenciadas pelo Futurismo, marchas militares, melodias e instrumentos tradicionais e uma forte componente narrativa em tempo real constituem elementos que se fundem numa textura única.”

Na primeira parte do espetáculo, a Orquestra tocou ainda o poema sinfónico Silêncio de Nikolai Miaskovski e Dmitri Chostakovitch – e volto a citar: “Na História da Música houve poucos momentos mais reveladores das relações entre as artes e o poder político do que a reação das autoridades soviéticas a uma récita da ópera Lady Macbeth do distrito de Mtsensk. (...) A Passacaglia é um dos interlúdios orquestrais que Chostakovitch interpola na ópera. Neste caso, é inserida no segundo ato da ópera, imediatamente após o homicídio do sogro de Katerina Izmailova. Assim, funciona como um momento de suspensão da ação e de caraterização musical de uma situação, ao estilo do teatro brechtiano. A passacaglia é uma forma musical cultivada a partir do Barroco e baseada em variações sobre um baixo ostinato. Chostakovitch inicia‐a com acordes dissonantes e traça uma textura que se desenrola do mais esparso para o mais denso, aumentando em expressividade. Para essa interpretação ser eficaz, é requerido bastante virtuosismo aos músicos da orquestra na apresentação desse momento capital na História da Música do século XX.”

Literalmente em cheio! Mas chamo gratamente a atenção dos mais distraídos para o facto de que o ciclo “Música & Revolução” prossegue e ainda promete várias coisas muito boas...

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