sábado, 23 de abril de 2016

UM PACTO COM O DIABO?




(Reflexões cruzadas sobre os programas de reformas estruturais e de estabilidade 2016-2020, que mostram como o técnico-político é cada vez mais uma arte de difícil manejo)

Ninguém de bom senso e de juízo médio acreditaria que o governo do PS com apoio parlamentar à esquerda teria vida fácil, no interior do acordo que o suporta, à sua direita, revanchista, vingativa ou simplesmente crítica e nas bandas do próprio PS. Neste último capítulo, se as atoardas do Galamba segurista são para situar na sua insignificância intrínseca, já a permanente arrogância de Sócrates pode fazer mossa. Quisera eu estar enganado e estar daqui a algum tempo a lamentar e penitenciar-me pela minha pouco consideração pela inclassificável maneira como a justiça portuguesa está a tratar o caso Sócrates. Mas começo a ficar cada vez mais convicto de que muita gente será chamuscada com a toxicidade da amizade com Sócrates. Sempre tive a intuição de que o epicentro de tudo poderia estar no caso BES-GES e cada vez mais me convenço que será por aí que vão surgir elementos relevantes, mas veremos.

Claramente ciente das dificuldades de governação atrás mencionadas, António Costa decidiu explorar ao milímetro as margens de compatibilização possível entre as suas próprias promessas eleitorais, as matérias acordadas à esquerda com PCP e Bloco de Esquerda e o convencimento das autoridades comunitárias, tudo menos amigáveis e interessadas em reconhecer que este governo pode fazer diferente do seu (do Paf, claro). É justo assinalar que Costa teve um aliado com que talvez não contasse, o Presidente Marcelo, cuja intervenção tem sido bem mais do que uma cooperação institucional franca e consistente. Costa, salvo raras exceções (o caso Lacerda Machado é em meu entender uma dessas exceções e um regresso indesejado a um tipo de governação que o PS muito praticou historicamente) tem explorado exemplarmente essas margens de compatibilização possível. O Programa Nacional de Reformas e sobretudo o Programa de Estabilidade 2016-2020 fazem parte dessa filigrana e devem por isso ser analisados do ponto de vista técnico-político e não no plano estritamente técnico. É discutível que o Conselho de Finanças Públicas tivesse que assumir esta perspetiva técnico-política para analisar tais documentos. Admito a conflitualidade dessa posição. Mas no quadro da situação política atual não há análise técnica possível em sentido estrito dessa documentação. Teodora Cardoso tem essa ideia de que a economia possa analisar-se descontextualizada dos tempos políticos e já tem idade suficiente para não aprender outra abordagem. Aliás, creio que lhe falta experiência de vida para o compreender. E, hoje, o seu braço direito no Conselho, Rui Nuno Baleiras, que muito prezo pessoalmente, foi um dos secretários de Estado que passou pela governação portuguesa com menor sentido do que é a intervenção política e que lhe saiu mal, bastante mal. Por isso, no Conselho das Finanças Públicas estamos entendidos de disponibilidade para uma análise técnico-política.

O que dizer então do Programa de Estabilidade 2016-2020? A esmagadora maioria da comunicação social comentadora zurziu no realismo das previsões, como se nos últimos 5 anos, ou seja compreendendo os anos da Troika, não tivéssemos assistido exatamente à mesma orientação. Por outro lado, toda essa massa comentadora insurgia-se contra o facto dos programas de ajustamento incidirem mais na receita do que na despesa. Ora, o programa do atual governo dá a primazia à despesa e deixa para a receita apenas impostos que estão fora do acordo com apoio parlamentar. O que quero dizer com isto é há imensa hipocrisia a passear-se por aí. Na minha interpretação, a estratégia de estabilização do governo parece ter abandonado a ilusão de que o choque de consumo introduzido pela reposição de rendimentos asseguraria por si só a recuperação do crescimento. Pode dizer-se que o governo arrisca demasiado em previsões acima do que a generalidade das instituições internacionais tem considerado como razoáveis. Entendo esse facto como fruto da estratégia negocial com a Comissão Europeia. Mas onde penso que o excesso de otimismo é mais visível é nas previsões para o comportamento do investimento privado. As taxas de crescimento previstas variam entre 4,1 e 4,9%, o que representa face aos valores de 2014 e 2015 um acentuado reforço de crescimento. Não é tanto o valor das taxas previstas que me impressiona. O que é para mim mais intrigante é que, descontando a incidência dos fundos estruturais de apoio ao investimento privado, não se descortina no governo qualquer discurso consistente para o investimento privado, que abranja sobretudo o sistema de PME. A iniciativa Indústria 4.0 onde por via do digital se espera uma espécie de choque tecnológico nº 2 junto das empresas não parece suficientemente articulado num discurso consistente orientado para a recuperação do investimento privado.

Estando o investimento público fortemente condicionado pelo custo da dívida pública (o atraso de concretização de investimento público financiado por Fundos Estruturais é um mistério no Portugal 2020) e não tendo o setor privado desalavancado o suficiente em termos de redução da exposição à dívida, a ausência de um discurso coerente sobre essa recuperação do investimento privado coloca o Ministro da Economia numa posição muito desconfortável. Para além disso, a reduzida intervenção da Instituição Financeira para o Desenvolvimento, vulgo Banco de Fomento, em todo este processo, aliás com comissões de trabalho ad-hoc que parecem estar à margem dessa instituição corrobora a minha afirmação.

Por isso, embora me junte sem qualquer problema aos que pensam que a receita da Comissão Europeia e a não reestruturação da dívida pública são óbices estruturais de monta, não deixo de considerar que se poderia fazer mais, melhor e mais consistente em matéria de promoção do investimento privado.

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