(Reflexões
cruzadas sobre os programas de reformas estruturais e de estabilidade 2016-2020,
que mostram como o
técnico-político é cada vez mais uma arte de difícil manejo)
Ninguém de bom senso e de juízo médio acreditaria que o
governo do PS com apoio parlamentar à esquerda teria vida fácil, no interior do
acordo que o suporta, à sua direita, revanchista, vingativa ou simplesmente
crítica e nas bandas do próprio PS. Neste último capítulo, se as atoardas do
Galamba segurista são para situar na sua insignificância intrínseca, já a
permanente arrogância de Sócrates pode fazer mossa. Quisera eu estar enganado e
estar daqui a algum tempo a lamentar e penitenciar-me pela minha pouco
consideração pela inclassificável maneira como a justiça portuguesa está a
tratar o caso Sócrates. Mas começo a ficar cada vez mais convicto de que muita
gente será chamuscada com a toxicidade da amizade com Sócrates. Sempre tive a
intuição de que o epicentro de tudo poderia estar no caso BES-GES e cada vez
mais me convenço que será por aí que vão surgir elementos relevantes, mas
veremos.
Claramente ciente das dificuldades de governação atrás
mencionadas, António Costa decidiu explorar ao milímetro as margens de
compatibilização possível entre as suas próprias promessas eleitorais, as
matérias acordadas à esquerda com PCP e Bloco de Esquerda e o convencimento das
autoridades comunitárias, tudo menos amigáveis e interessadas em reconhecer que
este governo pode fazer diferente do seu (do Paf, claro). É justo assinalar que
Costa teve um aliado com que talvez não contasse, o Presidente Marcelo, cuja
intervenção tem sido bem mais do que uma cooperação institucional franca e
consistente. Costa, salvo raras exceções (o caso Lacerda Machado é em meu
entender uma dessas exceções e um regresso indesejado a um tipo de governação
que o PS muito praticou historicamente) tem explorado exemplarmente essas
margens de compatibilização possível. O Programa Nacional de Reformas e
sobretudo o Programa de Estabilidade 2016-2020 fazem parte dessa filigrana e
devem por isso ser analisados do ponto de vista técnico-político e não no plano
estritamente técnico. É discutível que o Conselho de Finanças Públicas tivesse
que assumir esta perspetiva técnico-política para analisar tais documentos.
Admito a conflitualidade dessa posição. Mas no quadro da situação política
atual não há análise técnica possível em sentido estrito dessa documentação.
Teodora Cardoso tem essa ideia de que a economia possa analisar-se
descontextualizada dos tempos políticos e já tem idade suficiente para não
aprender outra abordagem. Aliás, creio que lhe falta experiência de vida para o
compreender. E, hoje, o seu braço direito no Conselho, Rui Nuno Baleiras, que
muito prezo pessoalmente, foi um dos secretários de Estado que passou pela
governação portuguesa com menor sentido do que é a intervenção política e que
lhe saiu mal, bastante mal. Por isso, no Conselho das Finanças Públicas estamos
entendidos de disponibilidade para uma análise técnico-política.
O que dizer então do Programa de Estabilidade 2016-2020? A
esmagadora maioria da comunicação social comentadora zurziu no realismo das
previsões, como se nos últimos 5 anos, ou seja compreendendo os anos da Troika,
não tivéssemos assistido exatamente à mesma orientação. Por outro lado, toda
essa massa comentadora insurgia-se contra o facto dos programas de ajustamento
incidirem mais na receita do que na despesa. Ora, o programa do atual governo dá
a primazia à despesa e deixa para a receita apenas impostos que estão fora do
acordo com apoio parlamentar. O que quero dizer com isto é há imensa hipocrisia
a passear-se por aí. Na minha interpretação, a estratégia de estabilização do governo
parece ter abandonado a ilusão de que o choque de consumo introduzido pela
reposição de rendimentos asseguraria por si só a recuperação do crescimento. Pode
dizer-se que o governo arrisca demasiado em previsões acima do que a generalidade
das instituições internacionais tem considerado como razoáveis. Entendo esse
facto como fruto da estratégia negocial com a Comissão Europeia. Mas onde penso
que o excesso de otimismo é mais visível é nas previsões para o comportamento
do investimento privado. As taxas de crescimento previstas variam entre 4,1 e
4,9%, o que representa face aos valores de 2014 e 2015 um acentuado reforço de crescimento.
Não é tanto o valor das taxas previstas que me impressiona. O que é para mim
mais intrigante é que, descontando a incidência dos fundos estruturais de apoio
ao investimento privado, não se descortina no governo qualquer discurso
consistente para o investimento privado, que abranja sobretudo o sistema de PME.
A iniciativa Indústria 4.0 onde por via do digital se espera uma espécie de
choque tecnológico nº 2 junto das empresas não parece suficientemente articulado
num discurso consistente orientado para a recuperação do investimento privado.
Estando o investimento público fortemente condicionado pelo
custo da dívida pública (o atraso de concretização de investimento público
financiado por Fundos Estruturais é um mistério no Portugal 2020) e não tendo o
setor privado desalavancado o suficiente em termos de redução da exposição à dívida,
a ausência de um discurso coerente sobre essa recuperação do investimento
privado coloca o Ministro da Economia numa posição muito desconfortável. Para
além disso, a reduzida intervenção da Instituição Financeira para o Desenvolvimento,
vulgo Banco de Fomento, em todo este processo, aliás com comissões de trabalho ad-hoc que parecem estar à margem dessa
instituição corrobora a minha afirmação.
Por isso, embora me junte sem qualquer problema aos que
pensam que a receita da Comissão Europeia e a não reestruturação da dívida pública
são óbices estruturais de monta, não deixo de considerar que se poderia fazer mais,
melhor e mais consistente em matéria de promoção do investimento privado.
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