(A frase de Baptista
Bastos que virou chiste a partir da rábula do Herman é um bom pretexto para desfiar algumas memórias)
Eu sei que há quem se interrogue sobre as vantagens ou
desvantagens de abril 74 continuar tão presente na sociedade portuguesa, pelo
menos na representação que dela fazem as principais forças políticas
portuguesas. Não deixo de compreender os que pensam que seria preferível
consolidar de vez o que essa transformação política representou do ponto de vista
da eliminação dos fantasmas do isolamento e do “orgulhosamente sós”, para nos
concentrarmos decisivamente nos desafios que temos pela frente para dar algum
sentido aos que sem qualquer proveito próprio (o nome de Salgueiro Maia é
incontornável) arriscaram a vida e o seu futuro para dizer basta. Desafios que
estão concentrados de facto na descoberta e desenvolvimento de um lugar europeu,
pese embora a desconstrução emergente desse espaço. E que são talvez mais difíceis
do que ter acabado com um regime que ruía por todos os lados. Mas rapidamente
dou comigo a pensar que a preservação da memória recente é fundamental, uma vez
que, já hoje e para uma larga maioria da população mais jovem, não se faz ideia
alguma do estado de subdesenvolvimento e de arbitrariedades políticas e sociais
a que o regime nos tinha votado, com reflexos avassaladores em termos de “path dependency” para os tempos futuros.
Por isso, quando hoje vi as primeiras imagens das
comemorações na Assembleia da República e nas quais Ferro Rodrigues se
esforçava por disfarçar a sua imagem de rigidez de pose e o rosto alindado e
feliz da Zé Ribeiro, sua chefe de gabinete, transmitia alegria pela comemoração,
descendo a escadaria da Assembleia para receber o Presidente Marcelo, achei que
o símbolo é para preservar. Não é tanto o cravo como símbolo que importa conservar,
mas antes o do significado da transformação democrática e do derrube dos
estigmas do passado, dos quais as qualificações devem continuar a estar no
centro das nossas prioridades, tamanho foi o stock acumulado de desqualificação
que o regime nos deixou em termos de trajetórias familiares que só se apagarão
com algumas gerações.
Mas onde estavas tu no 25 de abril? Estava no exército na
administração militar, no Lumiar, em Lisboa, sentindo que se passava alguma
coisa, mas sem ter disso conhecimento ou informação privilegiada. Tinha vivido
o episódio das Caldas em Mafra, em condições de maior tensão, pois o ambiente
de Mafra era mais tenso e pesava sobre a cabeça daquela enorme percentagem de
licenciados ou com os cursos superiores a meio a possibilidade de ser chamado
ao curso de Capitães e isso significa ex-colónias e guerra de África
inexoravelmente. Percebia-se que estava algo no ar a ser germinado, mas
percebia-se também que a organização do sigilo era exemplar.
Dos dias 25 de abril de 1974 ao 1 de maio foi um fervilhar
de ideias e conversas nos meandros da unidade, onde foi possível identificar a posteriori quem estava
informado e ao par do que ia suceder-se. Recordo-me que no Primeiro de Maio,
sentia-se lá fora o ambiente e o ruído das manifestações de júbilo e, nesse dia,
um conjunto de escritores claramente ligados ao PCP visitou (recordo-me pelo
menos do Mário Castrim e do Carlos Oliveira, talvez o Saramago estivesse lá, já
não me consigo recordar) revolucionou por completo a rotina de uma unidade
militar. E assim vivi a transformação democrática.
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