(Com conflito de interesses
dada a amizade que me liga ao governador do Banco de Portugal e sem qualquer
informação privilegiada sobre a matéria, a libertação dos fantasmas ou rabos de palha do Banif gera uma situação
particular de lose-lose, ou seja onde todos perdem)
À medida que vamos sendo surpreendidos pelas sucessivas revelações
libertadas em torno do caso BANIF, mais se enraíza a minha convicção de que, em
matéria de accountability e de escrutínio
cidadão, as intervenções sobre a banca e sobre o sistema financeiro fazem temer
o pior em termos de transparência e de validação democrática. E esta minha convicção
não resulta apenas de um mal exclusivamente português, em que tudo é pequeno,
em que há sempre alguém a ter que ver com alguma coisa relevante. Ela resulta
até decisivamente da perceção de que a arquitetura da regulação financeira europeia
coloca o banco central nacional em situação complicada, pois a delimitação dos
campos de responsabilidades e intervenção dos bancos centrais nacionais e do BCE
é complexa e as condições de exercício do estatuto de autoridade de resolução
por parte do Banco de Portugal são precárias q.b.
Os últimos acontecimentos fazem prever o pior em termos de
manutenção dos níveis de confiança entre governo e Banco de Portugal. Curiosamente,
a mais do que promissora “prenda” Maria Luís Albuquerque parece ter o poder
quase mágico de escapar por entre os grossos picos de chuva, granizada diga-se,
e conseguir que pareça que foi o governo PS a conviver mais tempo com o dossier
BANIF. O que é obra. Mas o dia 14 trouxe-nos uma escalada da conflitualidade. Senão
vejamos. O ministro das Finanças é acusado de mentir à Comissão de Inquérito
pelo PSD e o secretário de Estado Mourinho Félix acusa o Banco de Portugal de “falha
de informação grave” e este último adjetivo teria necessariamente de incendiar
a comunicação social, já que cheira a sangue de destituição possível do Governador.
No caso da alegada mentira do ministro Centeno à Comissão
de Inquérito, regista-se o rocambolesco aparecimento de um correio eletrónico
endereçado pela responsável da supervisão bancária no BCE a um personagem não
identificado, no qual revela ter conversado com Centeno e Constâncio, tendo-lhe
sido solicitado que intercedesse junto dos serviços da Comissão Europeia para
desbloquear a proposta de aquisição do BANIF por parte do Santander. O furo político
do PSD é evidente. Resta saber se esta conversa é ou não posterior à tomada de
decisão de que só a proposta do Santander reuniria condições de aceitação. Se é
anterior, há de facto desconformidade entre o que dela resulta e o lavar as mãos
de Centeno na Comissão de Inquérito. Se foi posterior então não há
desconformidade. De tudo isto fica a curiosidade de saber que esclarecimentos irá
Centeno prestar à Comissão de Inquérito. Fica também a perceção de que um
agente poderoso em todo este processo, a DG Concorrência da Comissão Europeia,
tem um efetivo poder não escrutinado.
Quanto ao diferendo Governo – Governador, o que é mais
marcante é que tudo indica que o secretário de Estado Mourinho Félix mantém a
afirmação de “falha de informação grave” mesmo após se ter conhecimento do
esclarecimento do Banco de Portugal. A questão aqui envolvida é mais técnica e
de mais difícil avaliação. Pela nota de esclarecimento publicada pelo Banco de
Portugal, percebe-se que, a 15 de dezembro de 2015, o BANIF tinha esgotado as
suas possibilidades de mobilização de liquidez no âmbito de operações de política
monetária pela falta de ativos de garantia elegíveis. A prova disso é que o banco
iniciara nessa data o recurso à mobilização excecional de liquidez sem tais
garantias elegíveis, as já célebres operações ELA de cedência de liquidez. Invoca
o Banco de Portugal que, no âmbito dos seus deveres estatutários para com o BCE,
estava obrigado a comunicar a cedência excecional de liquidez e de que por razões
prudenciais recomendou ao BCE a “limitação
do acesso desta instituição às operações de cedência de liquidez de política
monetária (e crédito intradiário) ao saldo vivo que se verificava nesta data”.
Frisa a nota do BP que essa proposta correspondia à medida menos gravosa possível
em termos de ações discriminatórias por parte do Eurosistema, não implicando
devolução de fundos. Dir-se-ia que o BP deu o mote e o Eurosistema deu o golpe,
ou seja a determinação de uma medida mais gravosa, a suspensão de tais operações,
ou seja, cheque mate ao banco.
É claro que a nota do Banco de Portugal é posterior à divulgação
da ata do BCE por parte do Jornal de Negócios. O governo invoca falha de
informação, pois em simultâneo tinha-lhe sido solicitado iniciativa concreta
para obter financiamento adicional para o BANIF.
Que a comunicação do BP ao BCE me parece fundamentada nos
seus deveres estatutários não tenho dúvidas. Mais discutível é a questão da
necessidade de comunicação de tal decisão ao governo. Do ponto de vista do
senso comum, não se compreende que tal comunicação não tenha sido feita. Em meu
entender, a questão fundamental a discutir é a seguinte: não tendo existido essa
comunicação, será que o BP foi consistente ao longo do tempo nesse tipo de comunicação
não realizada aos governos com quem teve de interagir?
De qualquer modo, parece-me que todos perdem neste jogo estranho
de atribuição de responsabilidades ao outro. Com todo este alarido, dispensava-se
bem que um fogoso e creio que bem-intencionado Presidente da República,
habituado a ser o primeiro a dar a notícia, se antecipasse a uma decisão que
deveria ser comunicada normalmente pelo Banco de Portugal, a esperançosa nomeação
de Elisa Ferreira e também de Máximo dos Santos para vice-governadores. A vida não
está fácil para o meu amigo Governador e para ele vai a minha sincera admiração
pela sua estoica resistência a mares tão agitados e não há nesta admiração qualquer
tentativa de validação de decisões eventualmente menos felizes, que só o
conhecimento integral do contexto em que foram produzidas nos permitirá com a
distância necessária avaliar.
Chapeau!
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