domingo, 10 de abril de 2016

A DEVIDA ATENÇÃO AO QUE SE PASSA NA POLÓNIA




(Desde os tempos da resistência à ocupação comunista até ao conservadorismo despudorado do presente, a Polónia tem sido um cadinho de ensinamentos, mas a convergência atual entre o conservadorismo político e o religioso é mais que preocupante)

O movimento intelectual, popular e operário que protagonizou a partir de Gdansk todo o movimento de resistência à opressão soviética deixou-nos à época ensinamentos preciosos sobre as condições da transformação possível em regimes totalitários, nesse caso de opressão externa combinada com interesses internos veiculadores dessa opressão. O conceito de margens de transformação possível que passei a usar desde então foi muito forjado na leitura de alguns textos provenientes dessa corajosa dinâmica política. Recordo-me que na altura li e reli vários escritos de Adam Michnik, hoje creio que ainda editor-chefe do Gazeta Wyborcza. Num artigo de 2009, no Guardian, Michnik fazia suas as palavras do poeta russo do século Pyotr Chaadaev: “Não aprendi a amar a minha nação de olhos fechados, amordaçado ou de cabeça baixa. Acredito que um homem só pode ser útil ao seu país quando o pode olhar de forma clara.”

Na altura, talvez não tivéssemos prestado a devida atenção ao papel desempenhado pela igreja na resistência polaca e João Paulo II representou para o mundo ocidental uma igreja fundamentalmente interessada na questão leste-oeste e na recuperação do seu papel tradicional nesses países, com relevo particular para a Polónia.

Hoje, a Igreja está positivamente mais interessada na questão norte-sul e o Papa Francisco representa essa visão vinda do sul, mais propriamente dos bairros pobres de Buenos Aires. Na Polónia, recuperado o seu papel mais tradicionalmente assumido na sociedade polaca, a Igreja alinha hoje numa convergência perigosa com o conservadorismo político assanhado do Partido da Lei e da Justiça. Nos tempos mais recentes, os bispos polacos e o Partido da Lei e da Justiça (no poder, não esqueçamos) convergiram no sentido de desferir duros ataques aos direitos reprodutivos das mulheres polacas. Gavin Rae, no Social Europe, fala nos riscos de saúde associados a cerca de 150.000 abortos clandestinos em média por ano, num contexto em que a lei do aborto é já de uma imensa restrição, propondo a alta hierarquia da igreja católica polaca que o aborto seja total e irrevogavelmente banido. A conflitualidade social e política que esta ofensiva conjunta da Igreja e do Partido da Lei e da Justiça está provocar mostra como a ação da Igreja pode divergir fortemente entre dois contextos políticos, de força de transformação e resistência a veículo do conservadorismo mais profundo, ocultando primeiro o seu tradicionalismo e fazendo-o emergir quando as condições políticas se tornaram favoráveis.

Esta Europa já não se recomenda há muito e as contradições emergem de todos os cantos.

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