(Desde os tempos da
resistência à ocupação comunista até ao conservadorismo despudorado do presente,
a Polónia tem sido um cadinho de ensinamentos, mas a convergência atual entre o conservadorismo
político e o religioso é mais que preocupante)
O movimento intelectual, popular e operário que protagonizou
a partir de Gdansk todo o movimento de resistência à opressão soviética deixou-nos
à época ensinamentos preciosos sobre as condições da transformação possível em
regimes totalitários, nesse caso de opressão externa combinada com interesses
internos veiculadores dessa opressão. O conceito de margens de transformação
possível que passei a usar desde então foi muito forjado na leitura de alguns
textos provenientes dessa corajosa dinâmica política. Recordo-me que na altura
li e reli vários escritos de Adam Michnik, hoje creio que ainda editor-chefe do
Gazeta Wyborcza. Num artigo de 2009, no Guardian, Michnik fazia suas as
palavras do poeta russo do século Pyotr Chaadaev: “Não
aprendi a amar a minha nação de olhos fechados, amordaçado ou de cabeça baixa. Acredito
que um homem só pode ser útil ao seu país quando o pode olhar de forma clara.”
Na altura, talvez não tivéssemos prestado a devida atenção
ao papel desempenhado pela igreja na resistência polaca e João Paulo II
representou para o mundo ocidental uma igreja fundamentalmente interessada na
questão leste-oeste e na recuperação do seu papel tradicional nesses países,
com relevo particular para a Polónia.
Hoje, a Igreja está positivamente mais interessada na
questão norte-sul e o Papa Francisco representa essa visão vinda do sul, mais
propriamente dos bairros pobres de Buenos Aires. Na Polónia, recuperado o seu
papel mais tradicionalmente assumido na sociedade polaca, a Igreja alinha hoje numa
convergência perigosa com o conservadorismo político assanhado do Partido da Lei
e da Justiça. Nos tempos mais recentes, os bispos polacos e o Partido da Lei e
da Justiça (no poder, não esqueçamos) convergiram no sentido de desferir duros
ataques aos direitos reprodutivos das mulheres polacas. Gavin Rae, no Social Europe,
fala nos riscos de saúde associados a cerca de 150.000 abortos clandestinos em
média por ano, num contexto em que a lei do aborto é já de uma imensa restrição,
propondo a alta hierarquia da igreja católica polaca que o aborto seja total e
irrevogavelmente banido. A conflitualidade social e política que esta ofensiva
conjunta da Igreja e do Partido da Lei e da Justiça está provocar mostra como a
ação da Igreja pode divergir fortemente entre dois contextos políticos, de
força de transformação e resistência a veículo do conservadorismo mais profundo,
ocultando primeiro o seu tradicionalismo e fazendo-o emergir quando as condições
políticas se tornaram favoráveis.
Esta Europa já não se recomenda há muito e as contradições
emergem de todos os cantos.
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