quinta-feira, 25 de julho de 2013

UM LIVRO A PERCORRER


Herbert George Wells (1866-1946), conhecido como H. G. Wells, foi provavelmente num certo período do início do século XX o escritor mais famoso do mundo. Autor de romances como “A Guerra do Mundo” e “A Máquina do Tempo”, entre mais de cem livros publicados, H. G. é o protagonista desta biografia ficcionada por David Lodge em 2011 e recentemente editada em português pela Asa.

Escreve Lodge: “H. G. foi um cometa. De repente irrompeu da escuridão dos finais do século XIX e durante décadas brilhou no firmamento literário, suscitando espanto, temor e alarme, como o cometa de In the Days of the Comet, que ameaçava destruir a Terra mas afinal a transformava pelo efeito benéfico da sua cauda gasosa. Também H. G. tinha a aspiração de deixar atrás de si um mundo transformado, e apesar de não o ter conseguido (quem conseguiria?) teve um efeito libertador e inspirador para muitas pessoas. Com o passar do tempo, a sua imaginação e o seu intelecto perderam brilho, a pouco e pouco as pessoas deixaram de olhar para cima e maravilhar-se, e agora desapareceu da nossa vista. Mas há órbitas excêntricas na história da literatura. Talvez um dia ele volte a cintilar no firmamento.”

“Um Homem de Partes” é uma história bem contada ao longo de quase seiscentas páginas que nos levam a revisitar a vida e a obra (embora não a totalidade) de um escritor que desbravou terrenos múltiplos – nas letras, no ensaio de divulgação e na ficção científica, como em temas políticos (do socialismo fabiano à governação mundial) e, sobretudo, na questão sexual e dos direitos das mulheres em pleno período vitoriano –, mostrando-se uma personalidade tão atraente quanto complexa, controversa e até execrável.

A narrativa inicia-se em 1944, quando Londres sofre os derradeiros ataques aéreos alemães e H. G. – doente de cancro no fígado e deprimido pelo cada vez mais fraco acolhimento dos seus livros – reavalia a sua vida imaginando entrevistas a si próprio que pontuarão as várias partes do romance.

Conheço mal o conjunto da obra de Wells, mas há certamente um (para mim) inexplicável enviesamento “lodgiano” no modo como escolhe privilegiar, quase obsessivamente, a relação de H. G. com as mulheres – o que não deixa de fazer com a devida qualidade e subtileza – e secundarizar muitos outros temas, à exceção talvez das suas polémicas e rivalidades com outros escritores e intelectuais seus contemporâneos. O certo é que o retratado era um homem gordo e com pouco mais de um metro e meio de altura que passou à posteridade como tendo sido amante de mais de cem mulheres, portanto presumivelmente muito dotado em assuntos relacionados com “partes” – de facto, ele viveu dezenas de anos com a sua segunda mulher Jane enquanto ia mantendo casos por ela tolerados com as mulheres com quem se ia cruzando, casos esses algumas vezes significativos e duradouros (como com a conhecida escritora feminista Rebecca West).

Mas, mais do que tudo, o trabalho de Lodge fornece-nos pistas de reflexão de intensa intimidade. Escolho três exemplos entre muitos. Primeiro, o indivíduo: “Mas o ser humano é assim mesmo. Somos um monte de peças incompatíveis, e para disfarçar inventamos histórias sobre nós mesmos. A unidade mental do indivíduo é uma ficção. A máquina humana é feita simplesmente de uma imensidade de sistemas comportamentais vagamente interligados, que se apoderam do controlo do corpo e participam numa ilusão comum de formarem uma unidade.”

Depois, as imperfeições quotidianas: “Que escravos somos dos nossos genitais, pensa, que quantidades de tempo, energia e espírito desperdiçamos a planear o seu encontro com o de outra pessoa, e depois a esconder esse encontro.”

Por último, o sentido do fim. Como quando Wells, à beira da morte, pensou que “deu a sua opinião – a raça humana que faça o que quiser” e que “ele não tem mais nada a dizer.” Ou como quando escreveu, numa carta a Bertrand Russell: “Este vasto regresso ao caos a que chamam a paz, a infinita pequenez das grandes massas dos meus concidadãos, a perversidade da religião organizada, fazem-me desejar um sono de que não acorde.” Ou como no pedaço de papel encontrado na caixa de costura da mãe: “E se não houver encontro além da tumba, / Se tudo for escuridão, silêncio, repouso é também; / Não temas, coração que em lágrimas se derrama, / Pois Deus ainda dá o sono àqueles que ama / E se um sono eterno for a sua vontade, virá por bem.” Ou, ainda, como quando aquele seu personagem gravemente doente e à espera de ser operado confessa ao seu secretário: “Espero que ele me mate, Gardener… Do que eu tenho mais medo é desse último farrapo de vida. Posso simplesmente continuar assim – uma fimbria mutilada de um tecido que sofre. E depois – todas as coisas que escondi, calei, menosprezei ou corrigi depois triunfarão sobre mim. (…) Não acredites no que eu posso dizer no último momento…”

Um livro desequilibrado sobre um ser cheio de contradições e, não obstante, tanto sentido nele…

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