Passei ontem toda uma viagem de Alfa Pendular
para o Porto a seguir os efeitos na blogosfera e na imprensa económica da que
hoje nos parece histórica decisão do Conselho de Governadores do BCE de projetar
finalmente para o mercado o “quantitative
easing à moda europeia”. O “live blog”que o Financial Times dedicou à conferência de imprensa de Mario Draghi,
envolvendo o antes, a própria conferência e os comentários suscitados sobretudo
no Twitter pela decisão em tempo real constituiu um momento raro de perceção do
mundo naquele momento e talvez venha a ser um documento histórico a analisar daqui
a algum tempo.
O meu post anterior sobre esta matéria e a ampla
cobertura que o meu colega de aventura dedicou a esta questão situam bem a meu
ver o significado da decisão do BCE, largamente vulgarizada na imprensa
nacional que não capta o que pode estar verdadeiramente em jogo nesta tentativa
de Draghi de subir o tom na sua já célebre afirmação do passado de que “faremos
tudo o que for necessário” em matéria de intervenção. Nessa reportagem do
Financial Times que me embalou a viagem de ontem, um tweet perdido sublinhava
que Draghi envergava a mesma gravata azul do momento em que proferiu a tal
afirmação que acalmou no passado os mercados e que inverteu a subida dos yields
das dívidas soberanas da periferia. Será Draghi um homem de rituais?
O BCE parece ter optado pelo salto
simultaneamente quantitativo e qualitativo, marcando a diferença pelo volume da
operação e sobretudo pela sua abertura até que os riscos deflacionários comecem
a dar sinais de inversão. Com esse modelo de decisão marcou o terreno, afirmando
a sua distância (independência?) face à linha de pressão decorrente da fobia
inflacionária alemã que em tudo vê sinais da traumática inflação de Weimar. Alguém
já referiu que os alemães nunca tiveram amplo conhecimento (nem réplica) de uma
obra de história monetária como de Milton Friedman e Anna Schwartz (A Monetary History of the United States1867-1960, Princeton University Press) na qual os autores mostram bem como
as indecisões e adiamentos de política monetária precipitaram a deflação da
Grande Depressão. A Alemanha nunca “leu” um referencial desses. O seu
referencial é antes o da descontrolada inflação weimariana que haveria de
precipitar a ascensão nazi.
Mas a decisão do BCE exige uma análise mais
profunda do que aquela que a sensação de alívio está a difundir sobretudo pela
imprensa nacional, também de alívio por antecipação, equivalendo a uma espécie
de dose de antibiótico de precaução face às reações previsíveis após uma também
previsível.
Em primeiro lugar, a operação do QE ontem anunciada
assume alguma tecnicidade que a nota técnica ontem publicada não esclarece
totalmente. Assim, trata-se de uma operação que acrescenta um programa de
aquisição de obrigações de dívida pública aos programas de aquisição se ativos
do setor privado que já estavam em funcionamento através do programa de compra
de instrumentos de dívida titularizados (asset
backed securities) e de compra de obrigações cobertas (covered bonds).
Em segundo lugar, a operação fez concessões às
fobias alemãs da mutualização de dívida. Só 20% das compras adicionais de
ativos terão riscos partilhados, proteção resultante de duas componentes – 12%
de aquisições por parte dos bancos centrais nacionais terão partilha de risco e
8% serão detidas pelo próprio BCE o que garante essa proteção. Como referia no último
post, pode questionar-se o que pode acontecer com possíveis defaults nos 80% de compras que não
beneficiam da partilha de risco? Neste caso, o cenário mais provável é os
bancos centrais nacionais tentaram a transformação desses títulos em dívida
soberana através de complexas operações de swap.
Draghi como gestor hábil de compromissos parece ser a imagem que decorre destas
concessões, que não sabemos com que pressão do lado contrário foram
concretizadas.
Em terceiro lugar, é relevante salientar que
relativamente a tratamento de credores, a operação é do tipo pari passu, ou seja assegura proteção
similar à dos investidores privados. Piscar de olho aos mercados e aos
investidores privados.
Em quarto lugar, há todo um sistema de condições
de elegibilidade que ultrapassam o conhecimento de alguém como eu que está fora
do sistema e que começam por uma análise de rating;
mais importante ainda, será o tratamento dessas condições de elegibilidade para
os países sob resgates ou em regimes de défices excessivos; ou seja, teremos de
esperar para ver como é que a Grécia será tratada sobretudo depois da eventual
vitória do Syrisa.
Em resumo, a operação de Draghi criará
provavelmente uma domesticação de mercado de que políticas públicas de
relançamento do investimento público e privado orientadas para o crescimento e
para a competitividade constituirão condição crucial para incrementar a procura
global e sobretudo a procura de crédito. O branqueamento dos que condenaram no
passado o uso possível da arma do BCE estará em curso a partir de hoje. Ontem,
por exemplo, António Lobo Xavier cedeu a essa tentação, proclamando-se defensor
no passado de um QE mais precoce que sinceramente tenho muitas dúvidas se
alguma vez explicitou com clareza. Que a brecha para a intervenção de Draghi
tenha sido a dos riscos deflacionários parece não haver dúvida. O
enfraquecimento que essa brecha proporcionou nas hostes alinhadas com as fobias
alemãs terá sido bem aproveitada por um Draghi estratega. Só não digo bendita
deflação, porque estamos a falar de uma coisa muito séria e que os economistas
de mainstream ainda não compreenderam quão grave é.
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