sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

E LÁ VAI LIQUIDEZ



Passei ontem toda uma viagem de Alfa Pendular para o Porto a seguir os efeitos na blogosfera e na imprensa económica da que hoje nos parece histórica decisão do Conselho de Governadores do BCE de projetar finalmente para o mercado o “quantitative easing à moda europeia”. O “live blog”que o Financial Times dedicou à conferência de imprensa de Mario Draghi, envolvendo o antes, a própria conferência e os comentários suscitados sobretudo no Twitter pela decisão em tempo real constituiu um momento raro de perceção do mundo naquele momento e talvez venha a ser um documento histórico a analisar daqui a algum tempo.
O meu post anterior sobre esta matéria e a ampla cobertura que o meu colega de aventura dedicou a esta questão situam bem a meu ver o significado da decisão do BCE, largamente vulgarizada na imprensa nacional que não capta o que pode estar verdadeiramente em jogo nesta tentativa de Draghi de subir o tom na sua já célebre afirmação do passado de que “faremos tudo o que for necessário” em matéria de intervenção. Nessa reportagem do Financial Times que me embalou a viagem de ontem, um tweet perdido sublinhava que Draghi envergava a mesma gravata azul do momento em que proferiu a tal afirmação que acalmou no passado os mercados e que inverteu a subida dos yields das dívidas soberanas da periferia. Será Draghi um homem de rituais?
O BCE parece ter optado pelo salto simultaneamente quantitativo e qualitativo, marcando a diferença pelo volume da operação e sobretudo pela sua abertura até que os riscos deflacionários comecem a dar sinais de inversão. Com esse modelo de decisão marcou o terreno, afirmando a sua distância (independência?) face à linha de pressão decorrente da fobia inflacionária alemã que em tudo vê sinais da traumática inflação de Weimar. Alguém já referiu que os alemães nunca tiveram amplo conhecimento (nem réplica) de uma obra de história monetária como de Milton Friedman e Anna Schwartz (A Monetary History of the United States1867-1960, Princeton University Press) na qual os autores mostram bem como as indecisões e adiamentos de política monetária precipitaram a deflação da Grande Depressão. A Alemanha nunca “leu” um referencial desses. O seu referencial é antes o da descontrolada inflação weimariana que haveria de precipitar a ascensão nazi.
Mas a decisão do BCE exige uma análise mais profunda do que aquela que a sensação de alívio está a difundir sobretudo pela imprensa nacional, também de alívio por antecipação, equivalendo a uma espécie de dose de antibiótico de precaução face às reações previsíveis após uma também previsível.
Em primeiro lugar, a operação do QE ontem anunciada assume alguma tecnicidade que a nota técnica ontem publicada não esclarece totalmente. Assim, trata-se de uma operação que acrescenta um programa de aquisição de obrigações de dívida pública aos programas de aquisição se ativos do setor privado que já estavam em funcionamento através do programa de compra de instrumentos de dívida titularizados (asset backed securities) e de compra de obrigações cobertas (covered bonds).
Em segundo lugar, a operação fez concessões às fobias alemãs da mutualização de dívida. Só 20% das compras adicionais de ativos terão riscos partilhados, proteção resultante de duas componentes – 12% de aquisições por parte dos bancos centrais nacionais terão partilha de risco e 8% serão detidas pelo próprio BCE o que garante essa proteção. Como referia no último post, pode questionar-se o que pode acontecer com possíveis defaults nos 80% de compras que não beneficiam da partilha de risco? Neste caso, o cenário mais provável é os bancos centrais nacionais tentaram a transformação desses títulos em dívida soberana através de complexas operações de swap. Draghi como gestor hábil de compromissos parece ser a imagem que decorre destas concessões, que não sabemos com que pressão do lado contrário foram concretizadas.
Em terceiro lugar, é relevante salientar que relativamente a tratamento de credores, a operação é do tipo pari passu, ou seja assegura proteção similar à dos investidores privados. Piscar de olho aos mercados e aos investidores privados.
Em quarto lugar, há todo um sistema de condições de elegibilidade que ultrapassam o conhecimento de alguém como eu que está fora do sistema e que começam por uma análise de rating; mais importante ainda, será o tratamento dessas condições de elegibilidade para os países sob resgates ou em regimes de défices excessivos; ou seja, teremos de esperar para ver como é que a Grécia será tratada sobretudo depois da eventual vitória do Syrisa.
Em resumo, a operação de Draghi criará provavelmente uma domesticação de mercado de que políticas públicas de relançamento do investimento público e privado orientadas para o crescimento e para a competitividade constituirão condição crucial para incrementar a procura global e sobretudo a procura de crédito. O branqueamento dos que condenaram no passado o uso possível da arma do BCE estará em curso a partir de hoje. Ontem, por exemplo, António Lobo Xavier cedeu a essa tentação, proclamando-se defensor no passado de um QE mais precoce que sinceramente tenho muitas dúvidas se alguma vez explicitou com clareza. Que a brecha para a intervenção de Draghi tenha sido a dos riscos deflacionários parece não haver dúvida. O enfraquecimento que essa brecha proporcionou nas hostes alinhadas com as fobias alemãs terá sido bem aproveitada por um Draghi estratega. Só não digo bendita deflação, porque estamos a falar de uma coisa muito séria e que os economistas de mainstream ainda não compreenderam quão grave é.

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