Já aqui confessei a minha grande admiração pela escritora brasileira Patrícia Melo (PM). Reencontrei-a agora nos escaparates do seu país com um livro recém-publicado (“Fogo-Fátuo”) e logo me muni dos dois imediatamente anteriores e a que ainda não tivera oportunidade de aceder.
Conheci PM durante as minhas viagens ao Brasil de finais do século passado e inícios deste, num momento em que ela não gozava ainda da notoriedade que entretanto merecidamente adquiriu. Lembro-me até de ter sido um daqueles rankings das revistas internacionais a chamar-me a atenção para um nome que desconhecia e que ali era anunciado como um daqueles que iria certamente marcar a ficção latino-americana nas próximas décadas.
Li PM em três vagas, sempre de imparável empreitada e sempre com enorme prazer. Primeiro, foram os quatro livros que criou nos anos 90 e em que a narrativa se voltava para a onda de violência que assolava as grandes metrópoles mas mesclando personagens marginais e criminosas (“favelados”) com outras oriundas de classes mais privilegiadas mas de algum modo tocadas por relacionamentos periféricos.
Depois, os três livros que surgem na primeira década do século XXI e que constituíram para mim – que estou longe de ser um crítico literário suficientemente competente – uma espécie de fase de transição entre aquela ficção contundente e quase violenta (não fossem os diversos matizes coloridos que a atravessam) e a que se lhe seguiria nestes últimos anos com uma dominante de romance policial (“Ladrão de Cadáveres”, p.e., foi considerado o melhor escrito do género na Alemanha em 2012), embora em estilo mais livre e sem cedências em relação à presença de uma forte dimensão social do que necessariamente agarrado aos seus traços convencionais.
A pena de PM amadureceu e ganhou alguns requintes qualitativos em componentes que já visivelmente incluía de humanidade, realismo, crítica mordaz e sentido de humor. Como quando, a abrir “Fogo-Fátuo”, se refere aos 80 anos do patriarca de Azucena Gobbi, a perita da central paulista de homicídios que é a sua protagonista, assim: “Não é câncer ou insuficiência renal. Não é coração. É outra coisa, ela pensa, é uma fortuna de 12 bilhões de neurônios começando a ser dilapidada. É também uma doença metafísica que, para alguns, vem junto com a aposentadoria. A rapidez com que tudo acontece é assustadora: num dia, você é o chefe da casa. No outro, anda de pantufas, sem objetivos, esquecendo coisas, e de repente já estão enfiando pílulas na sua boca, controlando o que você gasta, o que você come. Pelo menos com seu pai foi assim. Aos poucos, o velho foi-se curvando, encolhendo, apagando. É disso que ele vai morrer em breve. Na verdade, já está morrendo. Dia após dia, ela o vê apodrecendo, como uma árvore centenária que só precisa de uma boa tempestade para tombar.” Ou como quando, mais à frente, explicita: “Este país está mudando, é verdade. Prendemos um ou outro corrupto. Temos sistemas de cotas. Registramos empregadas domésticas. Mas também não é tudo isso. Não somos uma Dinamarca. Ninguém aqui chama preto de afrodescendente. E estamos muito longe de respeitar uma vaga para deficiente físico. Eu, você, todo mundo estaciona em vaga de paralítico. Foda-se o ‘proibido parar’.” Ou ainda como quando, em “Ladrão de Cadáveres”, desabafa: “Se tudo isso fosse um filme, estaríamos naquele momento em que você tem vontade de falar para o personagem para ele cair fora. É uma cena tensa, o personagem bate na porta da casa maldita e pergunta, tem aí alguém? Ninguém responde e ele entra assim mesmo. E lá dentro tem um assassino ou um cadáver, ou as duas coisas juntas. No filme, o sujeito vai em frente e o resto você já sabe. Muito sangue. Adrenalina pura. Na vida real, você não entra. Em compensação, faz coisas piores. Você assalta um cadáver. Você contrata um índio fodido para vender o pó que roubou do cadáver. Fode com a mulher do seu primo. Você faz tudo isso porque acha que pode cometer um erro, só um, mais um só, e mais outro, só mais uma cagada de nada e depois é só voltar e continuar o seu caminho, o seu filme, porque a trilha da vida continua lá, imóvel, esperando você fazer suas cagadas para depois voltar.” Ou, finalmente, como quando num dos seus contos de “Escrevendo no Escuro” (a menos boa porque mais desigual das três mais recentes obras, pesem embora pormenores deliciosos) escreve: “À noite, eu contava para o Zeca as intimidades escabrosas que ouvia da miss beiço, que havia colocado um caminhão de porcaria nos lábios para parecer dez anos mais jovem para o professor de ioga com quem andava trepando; e também da mosca-morta, que, aos domingos, largava o marido entupido de lexotan no sofá para se encontrar com o jovem assistente na casa da prima e parceira no crime. Mas a história mais cabeluda nos últimos tempos era mesmo a da Faustina, que nem se chamava Faustina, mas Sílvia, e era amante do sócio do próprio marido.”
Ah, e mais uma breve nota a encerrar: decerto que já todos tinham percebido que o acordo ortográfico é uma treta, mas as referências acima são disso particularmente elucidativas – entre aquilo que para nós são erros primários ou arcaísmos e a própria dinâmica de uma língua viva, o português do Brasil não é definitivamente acomodável a nada, muito menos a regras burocraticamente impostas e de nexo duvidoso; e não me parece que daí venha grande mal ao mundo...
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