quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

RÉPLICAS (2)



À boleia do post do meu colega de blogue
Agora que Tsipras tomou posse, sem gravata e sem juramento religioso, configurou um aparentemente estranho acordo de governo com a direita nacionalista grega e que constituiu governo, tudo isto em menos de três dias o que é obra, é natural que as réplicas das grandes decisões de 22 (BCE) e de 25 de janeiro (eleições gregas) se concentrem na incontornável questão da dívida grega (anulação parcial ou renegociação de taxas e maturidades.
Até agora os argumentos para uma não reestruturação com anulação parcial da dívida têm-se concentrado praticamente em duas linhas de raciocínio, que não são novas e que não correspondem a uma grande e refinada elaboração.
O primeiro argumento é o do risco moral (ou também conhecido na literatura económica por moral hazard). Em termos simples, o argumento do risco moral diz-nos que a anulação parcial de dívida (curiosamente a terminologia para o mundo menos desenvolvido muda passando a perdão da dívida!) aumenta o risco dos devedores persistirem na tripa forra, ou seja no rumo do endividamento como saída fácil e substitutiva de ganhos consistentes e continuados de produtividade e competitividade para alternar períodos de défice externo com períodos de excedente comercial. A aplicação do conceito de risco moral tem na literatura económica, sobretudo das crises financeiras, uma maior aplicação em processos centrados em agentes financeiros e não em países, como sucede com esta argumentação que considera os gregos incapazes de usar virtuosamente a referida anulação parcial da dívida. A linha de argumentação é frágil porque pressupõe total ausência de monitorização dos efeitos da decisão, bem como ignora os termos que uma negociação desta natureza e envergadura pode determinar.
O segundo argumento aponta para razões de má vontade, instabilidade ou mesmo de arma política na decisão de recusar a anulação parcial da dívida. A linha de argumentação que merece alguma atenção é a que se prende com a incapacidade política de alguns países do Norte para conter a animosidade de alguma direita nacionalista mais radical que capitaliza os mais sórdidos sentimentos quanto ao estilo de vida e de administração dos gregos. Não parece que tenha sido a Grécia a determinar a emergência política de tais forças e de tais sórdidas incapacidades de compreender a diversidade cultural da União Europeia, mas antes a carência de elevação e de estratégia de futuro na condução do projeto europeu. A moral da relação que determina uma dívida não responsabiliza apenas quem se endivida, mas também quem empresta.
Perante estes argumentos de débil consistência, é natural que releve hoje aqui a lúcida defesa de uma anulação parcial de dívida com processos de modernização de administração pública e de accountability na sociedade grega que podem ser negociados como condicionalidade, protagonizada curiosamente por um dos mais fervorosos adeptos da globalização, Martin Wolf, cronista emérito do Financial Times, assina neste jornal uma das mais convincentes defesas dessa anulação parcial com condicionalidades.
A argumentação de Wolf distingue-se dos argumentos de sinal contrário por adotar uma perspetiva global dos ganhos e perdas associados aos efeitos sobre a estabilidade/instabilidade do euro. Ou seja, o problema da escolha da solução mais sábia não deve ser resolvido apenas do ponto de vista do que será melhor para a Grécia, mas tendo em conta globalmente as vantagens e desvantagens para a zona euro. Wolfe calculou a percentagem da ajuda União Europeia /FMI à Grécia que representa efetivamente um financiamento direto ao governo grego. E conclui que apenas 11% dos empréstimos pós Troika cumpriram essa função, numa soma total equivalente a cerca de 2/3 dos 177% do peso da dívida grega no PIB. O restante visou sobretudo evitar o não pagamento dos mais arriscados empréstimos ao governo e aos bancos gregos.
Com base neste contexto, Wolf distingue entre a sábia e correta decisão (a anulação parcial com condicionalidades que potenciem a desejada modernização e accountability), a decisão politicamente correta (extensão de maturidades e flexibilização de taxas sem mexer no valor facial da dívida) e a decisão perigosa (mandar os gregos às malvas e forçar a via punitiva da saída). E a escolha de Wolf vai para a decisão sábia e correta, sobretudo porque ela é a única que combate consistentemente a perceção de que a zona euro pode ser destruída por processos especulativos, ou seja que a união monetária não é uma construção irreversível.
Que possamos encontrar no Financial Times uma das mais consistentes defesas da anulação parcial de dívida já não me espanta. É simplesmente o resultado (e a outra face da mesma moeda) da mais irracional insensibilidade à monitorização necessária de um dos mais escabrosos programas de ajustamento macroeconómico. Cheira-me que do ponto de vista da arte da negociação assistiremos a um desenvolvimento histórico. O problema é se a dimensão e estatura dos negociadores estará à altura do desafio. É que não ponho as mãos no fogo sobre a possibilidade desta gente ter entendido bem as lições das negociações travadas no período entre 1919 e 1939 e sobretudo da batalha travada por Lord Keynes para explicar aos seus parceiros de negociação que, cito a síntese iluminada de Bradford DeLong, “para que uma economia mundial de mercado seja estável e próspera, o ajustamento dos desequilíbrios macroeconómicos precisa de ser assumido simetricamente pelos países excedentários e deficitários e não apenas por estes últimos.”
Ou seja, uma questão de sabedoria, de aprender as lições da história, de sentido global do projeto do euro.

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