À boleia do post do meu colega de blogue
Agora que Tsipras tomou posse, sem gravata e sem juramento religioso, configurou um aparentemente estranho acordo de governo com a direita nacionalista grega e que constituiu governo, tudo isto em menos de três dias o que é obra, é natural que as réplicas das grandes decisões de 22 (BCE) e de 25 de janeiro (eleições gregas) se concentrem na incontornável questão da dívida grega (anulação parcial ou renegociação de taxas e maturidades.
Até agora os argumentos para uma não
reestruturação com anulação parcial da dívida têm-se concentrado praticamente
em duas linhas de raciocínio, que não são novas e que não correspondem a uma
grande e refinada elaboração.
O primeiro argumento é o do risco moral (ou
também conhecido na literatura económica por moral hazard). Em termos simples, o argumento do risco moral
diz-nos que a anulação parcial de dívida (curiosamente a terminologia para o
mundo menos desenvolvido muda passando a perdão da dívida!) aumenta o risco dos
devedores persistirem na tripa forra, ou seja no rumo do endividamento como
saída fácil e substitutiva de ganhos consistentes e continuados de
produtividade e competitividade para alternar períodos de défice externo com
períodos de excedente comercial. A aplicação do conceito de risco moral tem na
literatura económica, sobretudo das crises financeiras, uma maior aplicação em
processos centrados em agentes financeiros e não em países, como sucede com
esta argumentação que considera os gregos incapazes de usar virtuosamente a
referida anulação parcial da dívida. A linha de argumentação é frágil porque
pressupõe total ausência de monitorização dos efeitos da decisão, bem como
ignora os termos que uma negociação desta natureza e envergadura pode
determinar.
O segundo argumento aponta para razões de má
vontade, instabilidade ou mesmo de arma política na decisão de recusar a
anulação parcial da dívida. A linha de argumentação que merece alguma atenção é
a que se prende com a incapacidade política de alguns países do Norte para
conter a animosidade de alguma direita nacionalista mais radical que capitaliza
os mais sórdidos sentimentos quanto ao estilo de vida e de administração dos
gregos. Não parece que tenha sido a Grécia a determinar a emergência política
de tais forças e de tais sórdidas incapacidades de compreender a diversidade cultural
da União Europeia, mas antes a carência de elevação e de estratégia de futuro
na condução do projeto europeu. A moral da relação que determina uma dívida não
responsabiliza apenas quem se endivida, mas também quem empresta.
Perante estes argumentos de débil consistência, é
natural que releve hoje aqui a lúcida defesa de uma anulação parcial de dívida
com processos de modernização de administração pública e de accountability na sociedade grega que
podem ser negociados como condicionalidade, protagonizada curiosamente por um
dos mais fervorosos adeptos da globalização, Martin Wolf, cronista emérito do
Financial Times, assina neste jornal uma das mais convincentes defesas dessa anulação parcial com condicionalidades.
A argumentação de Wolf distingue-se dos
argumentos de sinal contrário por adotar uma perspetiva global dos ganhos e
perdas associados aos efeitos sobre a estabilidade/instabilidade do euro. Ou
seja, o problema da escolha da solução mais sábia não deve ser resolvido apenas
do ponto de vista do que será melhor para a Grécia, mas tendo em conta
globalmente as vantagens e desvantagens para a zona euro. Wolfe calculou a
percentagem da ajuda União Europeia /FMI à Grécia que representa efetivamente
um financiamento direto ao governo grego. E conclui que apenas 11% dos
empréstimos pós Troika cumpriram essa função, numa soma total equivalente a
cerca de 2/3 dos 177% do peso da dívida grega no PIB. O restante visou
sobretudo evitar o não pagamento dos mais arriscados empréstimos ao governo e
aos bancos gregos.
Com base neste contexto, Wolf distingue entre a sábia e correta decisão (a anulação
parcial com condicionalidades que potenciem a desejada modernização e accountability), a decisão
politicamente correta (extensão de maturidades e flexibilização
de taxas sem mexer no valor facial da dívida) e a decisão
perigosa (mandar os gregos às malvas e forçar a via punitiva da
saída). E a escolha de Wolf vai para a decisão sábia e correta, sobretudo
porque ela é a única que combate consistentemente a perceção de que a zona euro
pode ser destruída por processos especulativos, ou seja que a união monetária
não é uma construção irreversível.
Que possamos encontrar no Financial Times uma das
mais consistentes defesas da anulação parcial de dívida já não me espanta. É
simplesmente o resultado (e a outra face da mesma moeda) da mais irracional
insensibilidade à monitorização necessária de um dos mais escabrosos programas
de ajustamento macroeconómico. Cheira-me que do ponto de vista da arte da negociação
assistiremos a um desenvolvimento histórico. O problema é se a dimensão e
estatura dos negociadores estará à altura do desafio. É que não ponho as mãos
no fogo sobre a possibilidade desta gente ter entendido bem as lições das
negociações travadas no período entre 1919 e 1939 e sobretudo da batalha
travada por Lord Keynes para explicar aos seus parceiros de negociação que,
cito a síntese iluminada de Bradford DeLong, “para
que uma economia mundial de mercado seja estável e próspera, o ajustamento dos
desequilíbrios macroeconómicos precisa de ser assumido simetricamente pelos
países excedentários e deficitários e não apenas por estes últimos.”
Ou seja, uma questão de sabedoria, de aprender as
lições da história, de sentido global do projeto do euro.
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