(Jornal Público)
Os deuses parecem estar zangados. Já por várias
vezes este blogue assumiu as vestes negras do obituário, o que tanto pode
querer dizer que os acidentes da vida o provocam ou que este vosso amigo tem
amizades no escalão etário mais propenso a estes desenlaces.
A leitura do Público de hoje trouxe-me a notícia do
falecimento do Professor e Arquiteto Duarte Castel-Branco e isso transportou-me
num flash-back súbito para uma época da
minha vida profissional que me deixou imensas recordações de prazer intelectual
e sobretudo de fruição da companhia de gente muito inteligente, culta e
intelectualmente sobressaltada, que ajudou a formar o que sou hoje, para o bem
e para o mal.
(Duarte Castel-Branco)
A história do meu contacto com o aristocrata,
professor e arquiteto Duarte Castel-Branco conta-se de modo singelo.
O Duarte, como lhe chamávamos, tinha assinado
talvez o contrato da sua vida com a Câmara Municipal do Porto, como urbanista
encarregado da revisão do Plano de Ordenamento da Cidade do Porto, que havia de
transformar em Plano Diretor da Cidade, na era se bem me recordo de Paulo
Vallada e do seu Vereador Carlos Brito. Como homem de escala, Duarte
Castel-Branco convenceu a CMP a constituir uma equipa da sua confiança, capaz
de interagir com os serviços de urbanismo e outros, equipa essa que seria
instalada num palacete para os lados de S. Roque, onde funcionavam uns serviços
camarários cuja função já se me varreu da memória. A equipa, na qual um então
ainda jovem António Figueiredo fazia a sua incursão pioneira pelos domínios do
urbanismo, integrava os seguintes elementos: Professor Arquiteto Lixa
Filgueiras, Professor Doutor Pereira de Oliveira, geógrafo, então Diretor Regional
da Cultura em Coimbra, Arquiteto Nuno Guedes Oliveira (que tinha estudado
urbanismo com o Duarte no Centro de Estudos de Urbanismo e Habitação Engenheiro Duarte Pacheco) e meu grande amigo,
Professor Doutor Nuno Grande que então dirigia as Biomédicas e aos quais ainda
se juntavam gente mais nova como o Adriano Zilhão (sociologia), a Teresa
Andresen (paisagismo e ambiente), assumindo este vosso amigo a pasta da
economia, coordenando na prática os trabalhos de elaboração redatorial do
Plano. Assomam na minha memória os almoços e reuniões de trabalho deste grupo
de assessores do Plano, realizados no então Hotel Batalha do Porto, onde o
ambiente de discussão, de crítica, de aventura intelectual, de turbilhão das
ideias eram o elemento de união e de motivação de toda aquela gente, dos mais
novos como eu e o Nuno Guedes até aos mais velhos.
Na altura, o Duarte Castel-Branco já não estava
no auge da sua força intelectual e permanecia por vezes preso à convivência que
teve em Paris com Henri Lefèvre. A interdisciplinaridade do grupo e o seu
turbilhão de ideias acho que fizeram bem aquela fase da sua vida. O Duarte era
um aristocrata ribatejano sempre devoto da Senhora sua mãe D. Maria Cristina e pude compreender
esse contexto aristocrático no batizado de um dos seus netos, na sua
propriedade de Abrantes mesmo à beira-Tejo.
(Duarte Castel-Branco e sua mãe D.Maria Cristina)
Depois dos trabalhos do Plano do Porto, período
em que regressou à sua conturbada Faculdade de Arquitetura de Lisboa, perdi-lhe
o rasto, podendo registar apenas dois momentos bastante espaçados no tempo. O
primeiro em sua casa na Defensor de Chaves em Lisboa onde fui certificar uns elementos
curriculares ainda relacionados com o Plano do Porto. Lembro-me de à saída,
numa tarde solarenga com aquela luz única de Lisboa, me ter dado boleia até à
Baixa, já que se deslocava para Arquitetura ao Chiado. Não foi uma boleia
qualquer. Foi uma boleia no seu Jaguar com motorista. Recordo-me da sensação de
descer a Avenida da Liberdade numa viatura com motorista. O segundo momento,
bem mais recente, foi na Conferência Ibérica dos Urbanistas, na Universidade da
Beira Interior, Covilhã, creio que há três anos. O velho Duarte já não era o
mesmo, mas pela mão do seu filho António, também professor em Arquitetura,
assistiu a toda a conferência.
Do Duarte fico com aquela imagem da finura de espírito,
do seu talento e cultura musical (a arquitetura talvez tenha furtado a vida de
um pianista), a sua graça, a sua entrega à interdisciplinaridade, ao turbilhão
das ideias e a sua elegância aristocrática. A ele devo ter podido trabalhar com
um grupo tão entusiasmante.
Abrantes acolhe-o em paz, mirando seguramente o
Tejo enquanto as notas perdidas de uma peça qualquer de Debussy lhe acalmam o
espírito.
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