sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

IDEIAS E PRECONCEITOS

(John Cochrane)

Como tenho procurado mostrar ao longo de sucessivos posts, o prolongamento para além do socialmente desejável da recuperação agónica que as principais economias de mercado realizaram após a crise financeira de 2007-2008 exacerbou acentuadamente o debate de ideias na macroeconomia e políticas associadas. A economia americana é por todas as razões o centro desse debate. As ideias em confronto podem muito grosseiramente ser divididas em dois campos.
De um lado, temos os que se inspiram na tradição keynesiana, embora com matizes diferenciados dependentes sobretudo dos modelos teóricos e empíricos que se reivindicam inspirados por essa tradição (keynesianos propriamente ditos ou neokeynesianos). Esse campo de posições sempre reivindicou a necessidade de um estímulo fiscal à economia, assuma esse estímulo a forma de despesa pública ou de redução da carga fiscal, preferencialmente a primeira. O argumento principal reside na incapacidade da política monetária de injeção de liquidez na economia (qualquer que ela seja) conseguir por si só o relançamento esperado da economia real, dado o contexto de taxas de juro próximas de zero. Esta posição tem variantes consoante, entre outros aspetos, se admita a necessidade de ter de se mexer no referencial de inflação das economias, como é conhecido resultante da regra de manutenção de um ritmo estável de crescimento dos preços de 2%, capaz de assegurar uma taxa de desemprego em torno do seu valor natural.
Do outro lado, estão os que se opõem determinadamente ao reconhecimento da necessidade de estímulo fiscal, sobretudo pela capacidade dos agentes económicos poderem internalizar nas suas expectativas os efeitos futuros (aumentos de impostos) decorrentes do endividamento de hoje para assegurar o referido estímulo fiscal, comprimindo por antecipação as suas compras. A estabilidade da política monetária em torno da regra dos 2% de crescimento estável dos preços asseguraria o rumo certo às expectativas económicas, devendo a sua utilização para injeção de liquidez ser a mais episódica possível.
Como seria de esperar, a recuperação finalmente sustentada que parece emergir na economia americana teria forçosamente de avivar o debate. Antecipei essa possibilidade, sobretudo por via da recuperação de notoriedade que o segundo grupo iria encenar com o novo quadro macroeconómico americano.
Dito e feito. Um dos economistas com maior notoriedade e combatividade também nesse grupo, John Cochrane assinou no Wall Street Journal o que ele designou provocatoriamente An Autopsy for the Keynesians. O argumento central como não podia deixar de ser é o de associar o ressurgimento das ideias keynesianas ao por ele considerado episódico acontecimento de uma recuperação mais lenta e prolongada. Defende também a ideia de que a tese da espiral deflacionária não tem evidência empírica de suporte, afastando prematura e apressadamente o exemplo japonês como exemplo dessa não evidência.
Mas para os propósitos desta crónica o argumento que mais me interessa é a maneira como Cochrane se refere à questão do euro: “Não há nenhum governo que esteja remotamente disposto a gastar milhões de milhões de dólares ou euros em nome de um “estímulo” financiado por empréstimos de rotura. O euro está intacto: até os Gregos e os Italianos, depois de durante seis anos serem aconselhados a resolver os seus problemas com mais desvalorização e inflação, estão a resistir no euro e a enfrentar pelo contrário, embora lentamente, os seus problemas estruturais de oferta”.
Fica-se nitidamente com a ideia de que ideias e preconceitos se misturam perigosamente, antevendo na situação europeia algo que não corresponde à real dimensão dos problemas que a afligem.
Curiosamente, nas palavras mais recentes de Draghi, os riscos de instabilidade do não cumprimento do referencial dos 2% de inflação na zona euro emergem como centrais no seu discurso, com o espectro da deflação a mostrar-se cada vez mais forte, contradizendo literalmente a projeção de Cochrane.
Moral da história: no debate das ideias económicas, a presença dos preconceitos distorce gravemente a invocação das evidências empíricas mais pertinentes.

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