quinta-feira, 27 de setembro de 2018

CRENÇAS E EXPECTATIVAS



(Há quem diga que 2008 pouco impacto teve na ciência económica. Trata-se de uma afirmação que carece de aprofundamento. A conta-gotas lá vão emergindo obras e artigos que sugerem que não ficou tudo na mesma. Parece-me ser este o caso de “A Crisis of Beliefs” de Nicola Gennaioli e Andrei Shleifer, Princeton University Press, 2018, link aqui).)

Análises mais severas quanto ao poder de reprodução do mainstream em macroeconomia tendem a acentuar a resistência à mudança que as ideias económicas revelaram face ao que se passou em 2008. Temos de convir que o poder instalado tem armas para tal e o reconhecimento NOBEL não é o único instrumento, embora poderoso. Há de facto uma certa intermitência no modo como o Nobel premeia a insubmissão e a rebeldia das ideias.

Tenho defendido em posts anteriores que a controvérsia macroeconómica em torno dos fatores que terão conduzido à crise de 2008, sobretudo ao período precipitado pelo colapso do Lehman Brothers, está de certo modo indiretamente ligada à questão de saber se vai tudo permanecer na mesma em matéria de tendências dominantes na ciência macroeconómica. Tenho para mim que o aprofundamento desse debate vai acabar por ter sérias repercussões. Simplesmente, nas condições em que o poder académico está distribuído, a rebeldia das ideias demora por vezes um longo tempo até penetrar as hostes do pensamento estabelecido.

No debate que tenho divulgado neste blogue, entendo que o potencial de mudança está sobretudo concentrado (Krugman que me perdoe) naquelas teses que interpretam a crise de 2008 como essencialmente o resultado de disrupções no sistema financeiro. Como já referi repetidas vezes, trata-se de matéria vital para abordar os danos de uma próxima recessão possível. Muita gente se interroga se o sistema financeiro foi de facto objeto das reparações necessárias. Por isso não será indiferente a valia das teses que apontam para a disrupção violenta (no sentido de gerador de pânico) do sistema financeiro.

Há dias, Lawrence Summers, alguém que leio com atenção dentro desta minha opção de evitar ruído de leitura e concentrar-me no que vale a pena (uma questão de esperança de vida), chamou a atenção no seu blogue para uma obra que ele considera com potencial revolucionário das ideias macroeconómicas (link aqui). Summers referia-se à obra acima mencionada e essa indicação suscitou a minha atenção na medida em que segundo Summers ela vem na tradição de dois economistas que marcaram imenso a minha formação em matéria de crises e recessões: Hyman Minsky e Charles Kindleberger.

Dos dois autores de “A Crisis of Beliefs”, Andrei Shleifer e Nicola Gennaioli, só o primeiro constava do meu sistema de reconhecimento pessoal. Em primeiro lugar, porque Shleifer, conjuntamente com Kevin Murphy e Robert Vishny, é autor de um dos mais interessantes artigos publicados sobre a questão da industrialização em países de mais baixo rendimento e da sua relação com a dimensão do mercado: “Industrialization and the Big Push”, publicado no Quarterly Journal of Economics, com o peso institucional dessa revista. Ensinei-o anos a fio, nele sempre encontrando novos pontos de análise para uma questão que é fundacional da própria economia do desenvolvimento. Krugman designou-o “as a major breakthrough which ended a "long slump in development theory”.

Mais recentemente, Shleifer (russo-americano, proveniente de uma família judia russa) esteve envolvido no que alguma imprensa americana designou o caso Harvard-Rússia (o jornal The Globe de Boston foi quem cavalgou essencialmente o caso) e o jornalista que então seguiu o caso é hoje autor de um blogue independente, o Economic Principals, David Warsh, que continua fortemente especializado nas relações EUA-Rússia, de redobrado interesse com a administração Trump (link aqui). O caso conta-se em poucas palavras. Shleifer integrava uma equipa da Universidade de Harvard (de que Lawrence Summers era então presidente) que assessorou o governo de Boris Yieltsin em matéria macroeconómica e foi então acusado (e condenado) de tirar proveito da participação na missão para especular no mercado. Veja-se o intrigante artigo de Warsh sobre a ligação entre as personalidades Summers e Shleifer (link aqui). Harvard enquanto tal passou relativamente incólume pelo vendaval, mas Shleifer não.

Mas chega de contexto e falemos de crenças (beliefs). A obra de Shleifer e Gennaioli (Bocconi University – Milão) rompe finalmente com o paradigma das expectativas racionais para mergulhar fundo numa visão alternativa das crenças nos mercados financeiros (famílias compradoras de casas, investidores individuais e institucionais, bancos, bancos centrais, centros de previsões e macroeconomistas em geral). A evidência de ponto de partida para a obra é a intrigante surpresa que a derrocada do Lehman provocou, apesar de tudo que era conhecido sobre os acontecimentos que a precipitaram. Como seria de esperar, os autores concentram-se no manancial imenso de evidências sobre expectativas formadas que, novidade para mim, abundam disponíveis na economia americana para investigação. É sobretudo trabalhada a surpresa, não do colapso do Lehman, mas sobretudo a surpresa que foi causada com a revelação das fragilidades do sistema financeiro. É essencialmente o desencadear dos efeitos desta revelação que gerou o ambiente de multiplicação de contextos de pânico que precipitariam a destruição pós colapso do Lehman.

A novidade está no facto da obra trazer para a análise macroeconómica novos modelos da psicologia comportamental que contrariam as limitações apontadas não só à ideia de que o homus económico é racional em mercado, mas também à de que as expectativas se formam a partir da perceção do passado. Ou seja, o ambiente de crenças e expectativas com que Shleifer e Gennaioli trabalham é do tipo “forward looking”, ou seja em função de perceções sobre o futuro. Os autores sugerem que se formara um “excesso de otimismo” reinante sobre as fragilidades do sistema financeiro, que explica por que razão o colapso do Lehman causou surpresa apesar da informação existente sobre as crescentes dificuldades da instituição. E, de certo modo, não colhem também as teses do risco moral, ou seja toda a gente esperou que houvesse um resgate. Quando se concluiu que o Lehman não seria resgatado, mesmo assim o otimismo excessivo permaneceu durante algum tempo.

A área comportamental dos mercados financeiros nunca constituiu prioridade na minha formação. Para além das obras seminais de Minsky e Kindleberger na matéria, especialmente a deste último, Manias, Panics, and Crashes: A History of Financial Crises, nada mais de relevante cansou estes dois olhinhos. Mas a leitura dos primeiros capítulos de “A Crisis of Beliefs” faz-me pensar que estamos sempre a tempo de corrigir lacunas.

Sem comentários:

Enviar um comentário