(Há quem diga que 2008 pouco impacto teve na ciência económica. Trata-se de
uma afirmação que carece de aprofundamento. A conta-gotas lá vão emergindo obras
e artigos que sugerem que não ficou tudo na mesma. Parece-me ser este o caso de “A Crisis of Beliefs” de Nicola Gennaioli
e Andrei Shleifer, Princeton University Press, 2018, link aqui).)
Análises mais severas quanto ao poder de reprodução do mainstream em macroeconomia tendem a acentuar a resistência à
mudança que as ideias económicas revelaram face ao que se passou em 2008. Temos
de convir que o poder instalado tem armas para tal e o reconhecimento NOBEL não
é o único instrumento, embora poderoso. Há de facto uma certa intermitência no
modo como o Nobel premeia a insubmissão e a rebeldia das ideias.
Tenho defendido em posts
anteriores que a controvérsia macroeconómica em torno dos fatores que terão
conduzido à crise de 2008, sobretudo ao período precipitado pelo colapso do
Lehman Brothers, está de certo modo indiretamente ligada à questão de saber se
vai tudo permanecer na mesma em matéria de tendências dominantes na ciência
macroeconómica. Tenho para mim que o aprofundamento desse debate vai acabar por
ter sérias repercussões. Simplesmente, nas condições em que o poder académico
está distribuído, a rebeldia das ideias demora por vezes um longo tempo até
penetrar as hostes do pensamento estabelecido.
No debate que tenho divulgado neste blogue, entendo que o potencial de
mudança está sobretudo concentrado (Krugman que me perdoe) naquelas teses que
interpretam a crise de 2008 como essencialmente o resultado de disrupções no
sistema financeiro. Como já referi repetidas vezes, trata-se de matéria vital
para abordar os danos de uma próxima recessão possível. Muita gente se
interroga se o sistema financeiro foi de facto objeto das reparações
necessárias. Por isso não será indiferente a valia das teses que apontam para a
disrupção violenta (no sentido de gerador de pânico) do sistema financeiro.
Há dias, Lawrence Summers, alguém que leio com atenção dentro desta minha
opção de evitar ruído de leitura e concentrar-me no que vale a pena (uma
questão de esperança de vida), chamou a atenção no seu blogue para uma obra que
ele considera com potencial revolucionário das ideias macroeconómicas (link aqui). Summers referia-se à obra acima mencionada e essa indicação suscitou a
minha atenção na medida em que segundo Summers ela vem na tradição de dois
economistas que marcaram imenso a minha formação em matéria de crises e
recessões: Hyman Minsky e Charles Kindleberger.
Dos dois autores de “A Crisis of
Beliefs”, Andrei Shleifer e Nicola Gennaioli, só o primeiro constava do meu
sistema de reconhecimento pessoal. Em primeiro lugar, porque Shleifer,
conjuntamente com Kevin Murphy e Robert Vishny, é autor de um dos mais
interessantes artigos publicados sobre a questão da industrialização em países
de mais baixo rendimento e da sua relação com a dimensão do mercado: “Industrialization and the Big Push”,
publicado no Quarterly Journal of
Economics, com o peso institucional dessa revista. Ensinei-o anos a fio,
nele sempre encontrando novos pontos de análise para uma questão que é
fundacional da própria economia do desenvolvimento. Krugman designou-o “as a major breakthrough which ended a
"long slump in development theory”.
Mais recentemente, Shleifer (russo-americano, proveniente de uma família
judia russa) esteve envolvido no que alguma imprensa americana designou o caso
Harvard-Rússia (o jornal The Globe de Boston foi quem cavalgou essencialmente o
caso) e o jornalista que então seguiu o caso é hoje autor de um blogue
independente, o Economic Principals,
David Warsh, que continua fortemente especializado nas relações EUA-Rússia, de
redobrado interesse com a administração Trump (link aqui). O caso conta-se em
poucas palavras. Shleifer integrava uma equipa da Universidade de Harvard (de
que Lawrence Summers era então presidente) que assessorou o governo de Boris
Yieltsin em matéria macroeconómica e foi então acusado (e condenado) de tirar
proveito da participação na missão para especular no mercado. Veja-se o
intrigante artigo de Warsh sobre a ligação entre as personalidades Summers e
Shleifer (link aqui). Harvard enquanto tal passou relativamente incólume pelo
vendaval, mas Shleifer não.
Mas chega de contexto e falemos de crenças (beliefs). A obra de Shleifer e Gennaioli (Bocconi University –
Milão) rompe finalmente com o paradigma das expectativas racionais para
mergulhar fundo numa visão alternativa das crenças nos mercados financeiros (famílias
compradoras de casas, investidores individuais e institucionais, bancos, bancos
centrais, centros de previsões e macroeconomistas em geral). A evidência de
ponto de partida para a obra é a intrigante surpresa que a derrocada do Lehman
provocou, apesar de tudo que era conhecido sobre os acontecimentos que a
precipitaram. Como seria de esperar, os autores concentram-se no manancial
imenso de evidências sobre expectativas formadas que, novidade para mim,
abundam disponíveis na economia americana para investigação. É sobretudo
trabalhada a surpresa, não do colapso do Lehman, mas sobretudo a surpresa que foi
causada com a revelação das fragilidades do sistema financeiro. É
essencialmente o desencadear dos efeitos desta revelação que gerou o ambiente
de multiplicação de contextos de pânico que precipitariam a destruição pós
colapso do Lehman.
A novidade está no facto da obra trazer para a análise macroeconómica novos
modelos da psicologia comportamental que contrariam as limitações apontadas não
só à ideia de que o homus económico é racional em mercado, mas também à de que
as expectativas se formam a partir da perceção do passado. Ou seja, o ambiente
de crenças e expectativas com que Shleifer e Gennaioli trabalham é do tipo “forward looking”, ou seja em função de
perceções sobre o futuro. Os autores sugerem que se formara um “excesso de
otimismo” reinante sobre as fragilidades do sistema financeiro, que explica por
que razão o colapso do Lehman causou surpresa apesar da informação existente
sobre as crescentes dificuldades da instituição. E, de certo modo, não colhem
também as teses do risco moral, ou seja toda a gente esperou que houvesse um
resgate. Quando se concluiu que o Lehman não seria resgatado, mesmo assim o
otimismo excessivo permaneceu durante algum tempo.
A área comportamental dos mercados financeiros nunca constituiu prioridade
na minha formação. Para além das obras seminais de Minsky e Kindleberger na
matéria, especialmente a deste último, Manias, Panics,
and Crashes: A History of Financial Crises, nada mais de relevante cansou estes dois
olhinhos. Mas a leitura dos primeiros capítulos de “A Crisis of Beliefs” faz-me pensar que estamos sempre a tempo de
corrigir lacunas.
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