quarta-feira, 26 de setembro de 2018

PURITANISMO E CAVIAR



(Há quem diga que Serralves perdeu fulgor e que apesar da criatividade de muitos dos seus programadores a instituição não tem estado à altura do estatuto que lhe era reconhecido na arte contemporânea. A embrulhada em torno da exposição da obra de Mapplethorpe, que carece de explicação, tão desconjuntada se tem apresentado aos nossos olhos, sugere-me que Serralves poderá, oxalá não, estar a entrar no período a que chamaria de puritanismo e caviar.)

Serralves é um caso de estudo que não está realizado. O projeto começou por incomodar muita gente. A iniciativa da sociedade civil regional conseguiu mobilizar recursos nacionais e o estatuto de independência da sua programação, iniciada com um talentoso Todoli que só foi verdadeiramente apreciado quando a Tate Modern o contratou, garantiu-lhe uma presença inimitável na cultura em Portugal, a partir do Porto. João Fernandes e Suzanne Cotter conseguiram a meu ver prolongar essa áurea, que valeu sempre a Serralves um olhar de soslaio vindo de Lisboa, simultaneamente inquieta pelo protagonismo internacional da instituição e pela necessidade de estar presente, recordando sempre que o Estado ajuda.

Entretanto, um projeto da envergadura de Serralves, com um protagonismo nacional e internacional tão relevante, teve sempre o risco de se projetar arrogantemente na cena cultural da Região, onde nem sempre se dá ao devido valor à persistência e engenhosidade de imensas formas de expressão cultural por essa Região fora, desprovidas dos meios, recursos técnicos e humanos e poder mediático que Serralves apresenta. Esse equilíbrio regional que consiste em colocar a instituição ao serviço da Região disseminando conhecimento e abordagens e não sugando e matando iniciativas não é imputável a meu ver aos programadores, mas antes aos órgãos dirigentes da instituição. Ora, tive sempre as minhas dúvidas de que as administrações sucessivas e principais estruturas diretivas internas compreendessem esta maneira de estar na Região. É verdade que emergiram algumas parcerias e cooperações com outros centros culturais na Região, mas admito que necessitaria de mais elementos de avaliação para compreender se estas cooperações prolongam o vício atrás assinalado ou se, pelo contrário, abrem caminho a um outro paradigma de relacionamento construtivo com o Norte como um todo.

Quero manifestar aqui que não tenho qualquer conflito de interesses contra a atual administração de Serralves e por isso as minhas observações seguintes decorrem tão só de algumas constatações. Imagino que o critério assumido pela iniciativa privada presente no projeto de Serralves para a escolha de Ana Pinho para a presidência da administração tenha sido o das competências em gestão da sofisticada descendente de uma das costelas do empresariado nortenho, adquiridas essencialmente no setor financeiro. Pessoalmente preferiria um outro tipo de sofisticação, menos caviar e foie-gras e mais de pensamento e de atitudes de contraponto com a arte e prática do Museu, mas os responsáveis por Serralves lá sabem o que fazem. A verdade é que o novo contexto de gestão de Serralves não se livra dos rumores (e como todos sabemos o gossip é intrínseco do conhecimento simbólico de que se alimentam as práticas culturais) de que algo não vai bem do ponto de vista dos equilíbrios necessários entre a eficiência da gestão e a liberdade dos processos criativos. Nunca imaginei que Serralves fosse experiência única neste tipo de problemas, eles existem por todo esse mundo de instituições culturais apostadas na dimensão internacional.

O ruído que foi criado em torno da exposição de Mapplethorpe (divinos os artistas que mesmo depois de mortos estão na origem destes problemas) e da demissão de João Ribas, para além da enorme trapalhada de informação e contra-informação que tem vindo a público, gerou uma nuvem de interrogações que importa dissipar quanto antes. Como o título deste post sugere, acrescentar puritanismo à sofisticação caviar faria entrar Serralves numa deriva pouco recomendável para o estatuto de criatividade e liberdade que o projeto foi acumulando para bem da cultura nacional. Sou dos que penso que estilos de gestão podem matar uma cultura de criatividade e liberdade. Serralves não mereceria essa deriva. Um bom indicador de que essa deriva não existe é poder ouvir os programadores e quem trabalha em Serralves a dizer de sua justiça e pela sua livre VOZ. Estará a sofisticação de caviar pronta a criar esse ambiente de pronunciamento livre aos seus programadores?

Bem sei que José Pacheco Pereira insiste que está na administração de Serralves sem remuneração. Mas o que é que tem a dizer a este respeito?

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