(A irredutibilidade do debate em economia emerge de novo
com a sucessão dos conflitos de interpretação sobre o que afinal terá provocado
a Grande Recessão. É
isto que torna a “ciência” (?) económica fascinante, mas que também fragiliza a
sua reputação quando olhada, de soslaio, pelos outros cientistas.)
(Um pouco longo)
O sempre
lúcido e astuto Martin Wolf, que tantas vezes é referenciado neste blogue, tem
uma fórmula curiosa relativamente ao que o mundo, particularmente o da política
económica, quis fazer após a crise de 2008. Diz Wolf que esse mundo quis
regressar a uma melhor versão do passado em matéria de regulação financeira,
permanecendo praticamente na mesma em relação às outras dimensões do problema.
Explicitando: “A maior ambição da
política económica pós-crise pode ser descrita pela palavra resgate. Isso foi
assegurado colocando os balanços de títulos de dívida soberana por detrás do
colapso do sistema financeiro, descendo taxas de juro, permitindo que os
défices públicos aumentassem a curto prazo ao mesmo tempo que limitando a
expansão fiscal discricionária e introduzindo novas e complexas regulações
financeiras. Estas medidas impediram o colapso económico, em comparação com os
anos de 1930, e trouxeram uma (débil) recuperação” (Financial Times, linkaqui). Percebe-se que Martin Wolf está entre os que pensam que se poderia ter
ido bastante mais além e ser mais disruptivo para bem da estabilidade do
sistema financeiro. Algo de similar à posição já aqui comentada e assumida pela
revista The Economist. Dever-se-ia
segundo Wolf ter querido regressar não a um passado, mesmo que em versão
melhorada, mas antes a um futuro totalmente diferente.
Pode
entretanto perguntar-se o que é que os macroeconomistas e a ciência
macroeconómica em geral fizeram para regressar não a um passado melhorado mas a
um futuro diferente?
Se quisermos
ser rigorosos na resposta a esta questão, diremos que pouco fizeram. Talvez
fosse mais correto dizer que o contexto é desfavorável para terem feito algo de
melhor. Vivemos tempos em que a palavra da elite económica, sobretudo daquela
que ousa pensar e ir contra as ondas do mainstream,
é fortemente desvalorizada. Publica-se e até se vende, mas em termos de
influência sobre a tomada de decisão pode dizer-se que os macroeconomistas são,
foram neste caso, pouco ouvidos.
Dir-me-ão
alguns de vocês que isto é uma consequência de se comunicar mal o produto de
uma obra ou de uma investigação. Não sou dos que despreze totalmente este
argumento, sobretudo porque estamos a falar de comunicar matéria regra geral de
grande sofisticação formal. Ora nem todo o investigador e economista de craveira
comunica facilmente. Há casos desses mas não são a regra. Mas não me parece ser
esse o ponto. Em primeiro lugar, os economistas que não se identificam com os
interesses adquiridos (vested interests)
do capitalismo nas diferentes sociedades sofrem uma barragem sistemática nos
meios de comunicação social de circulação mais ampla (tabloides e outros
meios). Mas, mais do que isso, em meu entender, estamos perante o que designo
de limitação irredutível da macroeconomia contemporânea, a conflitualidade dos modelos,
das explicações que com eles construímos e das suas implicações em termos de
política económica e monetária.
A explicação
dos motivos reais que conduziram à Grande Recessão de 2008 e seus
prolongamentos pela segunda década do novo milénio está longe de estar
estabilizada e ter reunido consensos de interpretação suficientemente amplos e
validados. Em primeiro lugar, porque nem sempre há unanimidade quanto ao
próprio objeto da explicação: explicar os motivos do colapso de 2008 ou
explicar o conjunto desse colapso e da lenta recuperação que se lhe seguiu nas
principais nas economias maduras? Como se compreende, o objeto da investigação
não é o mesmo. Mas sobre a própria identificação das forças motoras que
conduziram ao colapso com epicentro na queda do Lehman Brothers a
conflitualidade é bastante para impedir uma comunicação satisfatória (para
decisor aplicar) das implicações em termos de política económica e monetária. É
a este segundo aspeto que gostaria de me referir neste post.
Modestamente,
embora com a convicção de que na comunicação portuguesa não abunda a divulgação
dos termos do debate, este blogue tem tentado do modo mais sistemático possível
apresentar as principais posições em confronto. Como os historiadores
económicos bem o sabem, a interpretação de acontecimentos como a Grande
Recessão de 2008 exige por vezes a passagem do tempo. Por exemplo, a Grande
Depressão de 1930 suscita ainda pontos de vista diferentes, aliás favorecidos
pela análise comparativa com o menos penoso colapso de 2008.
No ainda em
curso mês de setembro, a blogosfera económica animou-se com divergência de
pontos de vista sobre matérias relacionadas com a explicação da Grande Recessão
de 2008. Registo para já dois focos de interpretações conflituais: (i) a
relevância dos fatores de desregulação financeira e de perturbações nos
mercados de crédito versus o foco no colapso do setor da habitação e dos seus
preços; (ii) a adequação do estímulo fiscal realizado na economia americana em
tempos de administração OBAMA. O primeiro foco respeita mais à explicação do
próprio colapso de 2008, ao passo que o segundo está mais relacionado com a
explicação de algo mais abrangente, o colapso e a lenta e penosa recuperação
que se lhe seguiu.
Em post anterior, dei conta do mais recente
contributo de Ben Bernanke para este debate. O seu artigo no Brookings (link
aqui) coloca-o do lado dos que vêm na disrupção do setor financeiro e dos
mercados de crédito a principal razão para o colapso. Compreende-se a
relevância possível desta explicação do ponto de vista de saber se tudo foi
feito no tal regresso a um passado em versão melhorada para gerir melhor uma
possível recidiva futura.
É tempo hoje
de referir o outro lado da interpretação, o que coloca a explicação mais no
rebentamento da bolha imobiliária e no colapso do setor de habitação com os
reflexos correspondentes em termos de derrocada do investimento residencial e
do consumo via destruição de riqueza. Paul Krugman vem juntar-se ao debate com
dois artigos sucessivos de opinião no New York Times; “Botching the Great Recession”
(Remendando a Grande Recessão) de 12 de setembro (link aqui) e “The
Credit Crunch and the Great Recession” (O colapso do crédito e a Grande
Recessão) de 14 de setembro (link aqui). De classificação mais difícil (nos
termos do debate) é a obra seminal dem Atif Amian e de Amir Sufi, The House of
Debt (Chicago University Press, 2014), já comentada neste blogue, a qual ficará
fora das cogitações de hoje.
Os dois
artigos de opinião de Krugman não têm o estatuto de “paper” estruturado como o contributo de Bernanke apresenta (linkaqui) e por isso não podem ser olhados ao mesmo nível. Porém, a reserva crítica
que Krugman coloca ao argumento de Bernanke merece atenção sobretudo porque
elege duas dimensões que me parecem relevantes. Por um lado, separando o
comportamento do investimento residencial (em habitação) do investimento em
geral, os dados da economia americana mostram que a recuperação do colapso foi
bem mais rápida no investimento não residencial do que no investimento em
habitação. O que parece apontar mais para a relevância do colapso da bolha
imobiliária. Por outro lado, Krugman sublinha a necessidade de Bernanke
explicar melhor os mecanismos através dos quais o colapso dos mercados de
crédito terá induzido os elementos cruciais da Grande Recessão.
Com as
devidas reservas induzidas pela terrível mudança de escala, os termos do debate
acabam por ser relevantes para os adaptarmos à situação portuguesa. Devo notar
que podem registar-se sinais ou mesmo evidências de bolha imobiliária sem que
ela seja induzida ou propulsionada pelo desregramento dos mercados de crédito.
Alguma especulação ou se quiserem euforia hoje larvar no mercado imobiliário
nacional parece não estar a beneficiar neste momento de uma oferta desregrada
de crédito, pelo menos seguindo a evolução do crédito bancário à habitação
segundo os dados do Banco de Portugal.
A torneira do crédito terá sido aliviada um pouco mas não me parece que o regresso de alguma
euforia seja acionado por via do crédito. Diria que estamos a viver, pelo
contrário, os efeitos da descoberta do mercado imobiliário português pelos
fundos de investimento. Na política de habitação em Portugal haverá um tempo
antes dos fundos e um outro, claramente diferente, depois da chegada dos
mesmos. Não sei se os decisores políticos nacionais e locais terão já
compreendido o verdadeiro alcance da mudança. Aliás, seria interessante analisar
até que ponto a política dos vistos GOLD terá seduzido esse tipo de
investidores a entrarem no mercado nacional. Teremos de aceitar que a
ocorrência de uma bolha imobiliária estimulada pelo desregramento do crédito é
bem mais gravosa do que a situação que parece estar a desenhar-se.
O debate
continua e estaremos atentos a ele.
A questão do
estímulo fiscal fica para outro post.
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