terça-feira, 18 de setembro de 2018

MAS AFINAL O QUE PROVOCOU A GRANDE RECESSÃO?



(A irredutibilidade do debate em economia emerge de novo com a sucessão dos conflitos de interpretação sobre o que afinal terá provocado a Grande Recessão. É isto que torna a “ciência” (?) económica fascinante, mas que também fragiliza a sua reputação quando olhada, de soslaio, pelos outros cientistas.)

(Um pouco longo)

O sempre lúcido e astuto Martin Wolf, que tantas vezes é referenciado neste blogue, tem uma fórmula curiosa relativamente ao que o mundo, particularmente o da política económica, quis fazer após a crise de 2008. Diz Wolf que esse mundo quis regressar a uma melhor versão do passado em matéria de regulação financeira, permanecendo praticamente na mesma em relação às outras dimensões do problema. Explicitando: “A maior ambição da política económica pós-crise pode ser descrita pela palavra resgate. Isso foi assegurado colocando os balanços de títulos de dívida soberana por detrás do colapso do sistema financeiro, descendo taxas de juro, permitindo que os défices públicos aumentassem a curto prazo ao mesmo tempo que limitando a expansão fiscal discricionária e introduzindo novas e complexas regulações financeiras. Estas medidas impediram o colapso económico, em comparação com os anos de 1930, e trouxeram uma (débil) recuperação” (Financial Times, linkaqui). Percebe-se que Martin Wolf está entre os que pensam que se poderia ter ido bastante mais além e ser mais disruptivo para bem da estabilidade do sistema financeiro. Algo de similar à posição já aqui comentada e assumida pela revista The Economist. Dever-se-ia segundo Wolf ter querido regressar não a um passado, mesmo que em versão melhorada, mas antes a um futuro totalmente diferente.

Pode entretanto perguntar-se o que é que os macroeconomistas e a ciência macroeconómica em geral fizeram para regressar não a um passado melhorado mas a um futuro diferente?

Se quisermos ser rigorosos na resposta a esta questão, diremos que pouco fizeram. Talvez fosse mais correto dizer que o contexto é desfavorável para terem feito algo de melhor. Vivemos tempos em que a palavra da elite económica, sobretudo daquela que ousa pensar e ir contra as ondas do mainstream, é fortemente desvalorizada. Publica-se e até se vende, mas em termos de influência sobre a tomada de decisão pode dizer-se que os macroeconomistas são, foram neste caso, pouco ouvidos.

Dir-me-ão alguns de vocês que isto é uma consequência de se comunicar mal o produto de uma obra ou de uma investigação. Não sou dos que despreze totalmente este argumento, sobretudo porque estamos a falar de comunicar matéria regra geral de grande sofisticação formal. Ora nem todo o investigador e economista de craveira comunica facilmente. Há casos desses mas não são a regra. Mas não me parece ser esse o ponto. Em primeiro lugar, os economistas que não se identificam com os interesses adquiridos (vested interests) do capitalismo nas diferentes sociedades sofrem uma barragem sistemática nos meios de comunicação social de circulação mais ampla (tabloides e outros meios). Mas, mais do que isso, em meu entender, estamos perante o que designo de limitação irredutível da macroeconomia contemporânea, a conflitualidade dos modelos, das explicações que com eles construímos e das suas implicações em termos de política económica e monetária.

A explicação dos motivos reais que conduziram à Grande Recessão de 2008 e seus prolongamentos pela segunda década do novo milénio está longe de estar estabilizada e ter reunido consensos de interpretação suficientemente amplos e validados. Em primeiro lugar, porque nem sempre há unanimidade quanto ao próprio objeto da explicação: explicar os motivos do colapso de 2008 ou explicar o conjunto desse colapso e da lenta recuperação que se lhe seguiu nas principais nas economias maduras? Como se compreende, o objeto da investigação não é o mesmo. Mas sobre a própria identificação das forças motoras que conduziram ao colapso com epicentro na queda do Lehman Brothers a conflitualidade é bastante para impedir uma comunicação satisfatória (para decisor aplicar) das implicações em termos de política económica e monetária. É a este segundo aspeto que gostaria de me referir neste post.

Modestamente, embora com a convicção de que na comunicação portuguesa não abunda a divulgação dos termos do debate, este blogue tem tentado do modo mais sistemático possível apresentar as principais posições em confronto. Como os historiadores económicos bem o sabem, a interpretação de acontecimentos como a Grande Recessão de 2008 exige por vezes a passagem do tempo. Por exemplo, a Grande Depressão de 1930 suscita ainda pontos de vista diferentes, aliás favorecidos pela análise comparativa com o menos penoso colapso de 2008.

No ainda em curso mês de setembro, a blogosfera económica animou-se com divergência de pontos de vista sobre matérias relacionadas com a explicação da Grande Recessão de 2008. Registo para já dois focos de interpretações conflituais: (i) a relevância dos fatores de desregulação financeira e de perturbações nos mercados de crédito versus o foco no colapso do setor da habitação e dos seus preços; (ii) a adequação do estímulo fiscal realizado na economia americana em tempos de administração OBAMA. O primeiro foco respeita mais à explicação do próprio colapso de 2008, ao passo que o segundo está mais relacionado com a explicação de algo mais abrangente, o colapso e a lenta e penosa recuperação que se lhe seguiu.

Em post anterior, dei conta do mais recente contributo de Ben Bernanke para este debate. O seu artigo no Brookings (link aqui) coloca-o do lado dos que vêm na disrupção do setor financeiro e dos mercados de crédito a principal razão para o colapso. Compreende-se a relevância possível desta explicação do ponto de vista de saber se tudo foi feito no tal regresso a um passado em versão melhorada para gerir melhor uma possível recidiva futura.

É tempo hoje de referir o outro lado da interpretação, o que coloca a explicação mais no rebentamento da bolha imobiliária e no colapso do setor de habitação com os reflexos correspondentes em termos de derrocada do investimento residencial e do consumo via destruição de riqueza. Paul Krugman vem juntar-se ao debate com dois artigos sucessivos de opinião no New York Times; “Botching the Great Recession” (Remendando a Grande Recessão) de 12 de setembro (link aqui) e “The Credit Crunch and the Great Recession” (O colapso do crédito e a Grande Recessão) de 14 de setembro (link aqui). De classificação mais difícil (nos termos do debate) é a obra seminal dem Atif Amian e de Amir Sufi, The House of Debt (Chicago University Press, 2014), já comentada neste blogue, a qual ficará fora das cogitações de hoje.

Os dois artigos de opinião de Krugman não têm o estatuto de “paper” estruturado como o contributo de Bernanke apresenta (linkaqui) e por isso não podem ser olhados ao mesmo nível. Porém, a reserva crítica que Krugman coloca ao argumento de Bernanke merece atenção sobretudo porque elege duas dimensões que me parecem relevantes. Por um lado, separando o comportamento do investimento residencial (em habitação) do investimento em geral, os dados da economia americana mostram que a recuperação do colapso foi bem mais rápida no investimento não residencial do que no investimento em habitação. O que parece apontar mais para a relevância do colapso da bolha imobiliária. Por outro lado, Krugman sublinha a necessidade de Bernanke explicar melhor os mecanismos através dos quais o colapso dos mercados de crédito terá induzido os elementos cruciais da Grande Recessão.

Com as devidas reservas induzidas pela terrível mudança de escala, os termos do debate acabam por ser relevantes para os adaptarmos à situação portuguesa. Devo notar que podem registar-se sinais ou mesmo evidências de bolha imobiliária sem que ela seja induzida ou propulsionada pelo desregramento dos mercados de crédito. Alguma especulação ou se quiserem euforia hoje larvar no mercado imobiliário nacional parece não estar a beneficiar neste momento de uma oferta desregrada de crédito, pelo menos seguindo a evolução do crédito bancário à habitação segundo os dados do Banco de Portugal. 
 


A torneira do crédito terá sido aliviada um pouco mas não me parece que o regresso de alguma euforia seja acionado por via do crédito. Diria que estamos a viver, pelo contrário, os efeitos da descoberta do mercado imobiliário português pelos fundos de investimento. Na política de habitação em Portugal haverá um tempo antes dos fundos e um outro, claramente diferente, depois da chegada dos mesmos. Não sei se os decisores políticos nacionais e locais terão já compreendido o verdadeiro alcance da mudança. Aliás, seria interessante analisar até que ponto a política dos vistos GOLD terá seduzido esse tipo de investidores a entrarem no mercado nacional. Teremos de aceitar que a ocorrência de uma bolha imobiliária estimulada pelo desregramento do crédito é bem mais gravosa do que a situação que parece estar a desenhar-se.

O debate continua e estaremos atentos a ele.

A questão do estímulo fiscal fica para outro post.

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